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8 de março

O dia 8 de março de 2009 foi dos mais violentos e de ódio às mulheres. Passamos a semana do Dia Internacional da Mulher horrorizadas/os com a explosão da história da menina de 9 anos estuprada pelo padrasto e excomungada pela Igreja, e com as várias outras histórias que pipocaram em seguida sobre meninas que sofrem violência sexual no âmbito doméstico.

Uma semana depois estamos sendo assombradas pela instauração da “CPI do aborto”; pela votação do PL 1.763/2007 que prevê o pagamento de um salário mínimo para a vítima de estupro que abdicar do seu direito ao aborto legal até que a/o filha/o complete 18 anos, o que chamamos de “Bolsa Estupro”. Entra em pauta o PL 831/2007 que dispõe sobre a exigência dos hospitais públicos implantarem programas de orientação sobre os método e efeitos do aborto quando for realizado, o que pode ser entendido como tentar “assustar” mulheres antes de realizarem um aborto legal. E, também, o PL 2.504/2007 que obriga o cadastramento de gestantes, nas unidades de saúde como forma de controle dessas gestações.

Há anos, talvez décadas, não se via um 8 de março de tanto ódio às mulheres. Parece que toda a luta empenhada por mulheres de diversas culturas em diversos tempos e todas as conquistas conseqüentes e as iminentes enfrentam um grande “freio” nesse momento. Há resistência e intolerância a cada passo que as mulheres dão no sentido da equidade de fato e, principalmente, pela autonomia dos seus corpos.

Violência foi o ato cometido pelo arcebispo de Recife D. José ao excomungar menina de 9 anos que, tendo sido estuprada durante 3 anos pelo padrasto engravidou de gêmeos e, correndo risco de vida, foi levada pela mãe ao serviço público seguro e legal de aborto. Violência atrás de violência foi o que essa menina sofreu. “Revitimização” chamamos quando alguém vitimizada busca apoio e recebe mais violência.

O aborto – que era seu direito e condição para a sua vida, pois com sua anatomia ela correria risco de vida se levasse em frente uma gestação de gêmeos – chamou mais a atenção do que a violência sexual que sofreu durante anos. Não apenas ela, mas também sua irmã de 15 anos de idade. Imagine uma criança de 6 anos sofrendo violência sexual diariamente até chegar aos 9 e ser levada pela mãe para o hospital pensando que a barriga crescendo é verminose. Por que uma notícia dessas não causa tanto furor? Por que uma violência desse porte é tão banal, quase legítima nesse país? Por que a prática do aborto causa tanta polêmica e o estupro não? Por que a atenção apenas na menina de 9 anos e não na sua irmã, na menina de 11 anos do Goiás, a do Rio Grande do Sul e tantas outras meninas e meninos também violentados?

Porque estamos num país que parece odiar as suas mulheres. Vimos uma igreja, que ao invés de promover a paz entre sua/seus fiéis, promove a violência contra as mulheres. Ao invés de envolver e proteger uma criança traumatizada, violentada e vítima, ignora seu sofrimento, humilha ela, seus pais e os médicos que salvaram sua vida diante de sua comunidade, tratando-os como criminosos. As excomunhões vomitadas pelo arcebispo foram um ótimo exemplo para podermos responder aquela velha pergunta: “Para que serve o 8 de março mesmo?” ou então: “Por que tem dia das mulheres e não dos homens?”

Fatos como esse respondem as perguntas acima: Nosso dia é para lembrar que em vários aspectos da vida social não somos consideradas seres humanos. Porque nos outros dias do ano sofremos abuso sexual, violência psicológica e física desde que somos crianças e ninguém fala nada. Quando conseguimos denunciar esses crimes, as penas são mais baixas do que outros crimes que não envolvem a vida das pessoas. Porque mesmo quando somos vítimas, o discurso é invertido e nos tornamos criminosas, como a menina de 9 anos. Porque além de sermos ensinadas a ser necessariamente mães, frágeis, dóceis, complacentes e submissas, quando somos violentadas e acessamos o que é nosso direito, somos humilhadas e temos que nos sentir culpadas.

Culpadas por procurar os serviços de aborto legal quando violentadas; culpadas por exigir justiça quando vítimas de um crime; culpadas por usar saia curta no calor e “provocar” estupros; culpadas por ter acesso a um cargo de poder anteriormente ocupado por um homem na empresa; culpadas por não querer ter filhos, ou culpadas por querer ter filhos, mas às vezes priorizar o trabalho e contar com a ajuda de outra pessoa; culpadas por falar mais alto em uma mesa de bar; culpadas por passar do peso esperado; culpadas por não querer transar com o marido depois de um dia difícil; culpadas por sentir desejo por mulheres e não por homens; culpadas por ter esquecido de levar a camisinha para hora H; culpadas por decidir se e quando queremos transar e engravidar; culpadas por abortar; culpadas por, mesmo sem a oportunidade de estudo, termos ido trabalhar como domésticas, trabalho desvalorizado na sociedade; culpadas por sermos negras, pobres, índias, trabalhadoras rurais; culpadas por nos tratarem apenas como corpos e não como sujeitos; culpadas simplesmente por sermos mulheres.

É por isso que existe o 8 de março. Para lembrar que desde que nascemos vivemos na desigualdade e na violência, e há muito cansamos disso. O ato do arcebispo foi criticado pelo mundo inteiro, mas gostaríamos de lembrar por ocasião do dia 8 de março de 2009, que diariamente sofremos violência de diversas formas e nada se fala.

Ao mesmo tempo em que houve solidariedade de diversas partes com a menina de Pernambuco, uma semana depois estão sendo pautados e votados três projetos de lei no Congresso Nacional que buscam coibir um direto básico das mulheres: a autonomia pelo próprio corpo. Quando nos perguntam “o que mais que as mulheres querem?”, lembramos que nem sobre os nossos próprios corpos temos domínio e poder de decisão ainda.

Na semana da mulher foi publicada a pesquisa econômica realizada por uma entidade internacional de sindicatos, e no Brasil, vergonhosamente, as mulheres ganham 34% menos que os homens, mesmo tendo escolaridade igual ou superior e sendo 48% da população economicamente ativa. Na semana da mulher, apenas 11% do legislativo são mulheres. Na Câmara Legislativa do Distrito Federal temos apenas três deputadas ativas, sendo que apenas uma apóia e corre atrás das demandas das mulheres lésbicas e bissexuais.

Estamos no século XXI e, em pleno 8 de março, ainda sofremos violência de todos os lados. Se houvesse uma alternativa, um mundo paralelo que amasse e respeitasse suas mulheres como sujeitos de si e não como corpos e ventres, eu solicitaria a minha excomunhão desse mundo violento e misógino. Mas como não há, utilizo das poucas oportunidades que tenho de me fazer sujeito que fala, e escrevo esse texto esperando que possa contribuir para que cada dia seja menos “horroroso” para as mulheres de todo o mundo.

* Clarissa Carvalho é feminista, mulher bissexual, antropóloga formada pela Universidade de Brasília e integrante da Sapataria – Coletivo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais do DF.

Blog da Sapataria: http://sapatariadf.wordpress.com.

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