Reproduzo abaixo uma carta trocada entre amigas bissexuais. O tema é a questão do não reconhecimento da bissexualidade pelo movimento LGBT. Acabo de voltar de Salvador, onde fui cobrir, a convite do evento, a III Mostra Possíveis Sexualidades. Além dos filmes exibidos, houve um debate muito interessante sobre a teoria queer e sua oposição as letrinhas, que divide as pessoas em categorias. A teoria queer enquanto ponto de vista político propoem o fim das letrinhas. Sejamos todos queer, mas sem perder a particularidades de nossas identidades. Talvez esse caminho seja a solução para tantas exclusões criadas por uma sigla, que mais confunde do que agrega. Leia o texto a seguir.
"Olá amiga!
Quanto tempo, não?! Espero que esteja bem!
Bom, escrevo a ti na verdade para dizer sobre minhas aspirações, que sentem falta de um feedback, pois essa questão de assumir a bissexualidade é muito solitária. Na maioria das vezes não tem eco. Tenho participado do movimento da maneira que posso, pois estou trabalhando no governo do estado, na cultura e viajo muito.
E isso faz com que eu pense, repense, me indigne. Vontade de dizer tantas coisas, mas ao mesmo tempo cansada de não ter retorno. No último encontro que participei, fiquei vários dias ouvindo sobre a visibilidade lésbica, em muitos momentos me sentindo um gasparzinho…rs. Ver pessoas até engasgar na hora de falar "bissexualidade" ou falando simplesmente pro forma e quando levanto para falar, vem aquele sentimento de alguém falando: "lá vem aquela de novo dizer que é bissexual".
Bom, foi assim praticamente todos os dias. O primeiro dia senti que esse negócio de só ouvir sobre lésbicas é muito chato. No segundo dia achei que pelos menos dizendo mulheres bissexuais, várias vezes já é um ganho porque, quem sabe assim, um dia nós entraremos na pauta de discussão do movimento. No terceiro dia, quando estávamos discutindo as propostas de cultura e as companheiras falando da cultura lésbica e que da bissexual não precisava falar, pois já estava contemplada nas lésbicas, foi demais.
Então, qual é o problema? Eu não me sinto contemplada, sou bissexual e não lésbica. Estou cansada de dizerem que quando estou com mulher sou lésbica, quando estou com homem sou heterossexual. Não! Sou bissexual independente de com quem esteja, amo as pessoas independentemente do seu sexo. Isso é o que me define! Minha identidade sexual é bissexual!
As lésbicas se preocupam tanto com a saúde das lésbicas, tentando provar que entre lésbicas não pega Aids. Então eu sou o que? Sou um hospedeiro? Se entre mulheres não pega aids então quem carrega a Aids somos nós bissexuais? E aí? Se somos nós que fazemos, porque então não pesquisar também a saúde de nós bissexuais?
Uma coisa que me marcou nesse encontro foi esse insight sobre o bissexual ser o hospedeiro. Porque é essa a impressão que muitas de nós temos quando vemos o desagrado de uma mulher ou um homem ao lhes informar a nossa sexualidade. Uma cara de nojo, como se fosse suja.
Porque não falar sobre bissexualidade? Nós somos safadas? Porque não nos definimos? Oras, safadeza é questão de caráter e não questão de identidade sexual!
Se um homem é casado com uma mulher e a trai com outro homem, ele pode tanto ter desejo pelos dois sexos, ser um heterossexual precisando viver outras coisas na sua vida, como ser alguém que poderia ser gay mas que não conseguiu lidar com seus desejos e com as pressões sociais que ainda hoje existem com relação à homossexualidade.
Nós não somos bem resolvidas? Me desculpe decepcioná-las. Mas eu sou muito bem resolvida. Amo as pessoas independentemente do seu sexo, sou bissexual. Só que se você for bissexual, se tem uma relação com uma mulher e em outro momento está com um homem, você é promiscua, segundo dizem?
Então precisamos discutir outra coisa também, qual é a definição de promiscuidade? É transar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo? Se for isso, as lésbicas e os heterossexuais também o fazem e são. Eu sou bissexual, já transei e me relacionei com homens e mulheres, embora com um de cada vez. E isso envolve outras questões, como: qual o contrato de relacionamento que você tem? É de exclusividade sexual? É aberto? Aberto em relação a sexo ou a afeto também? Contratos de relacionamento independem da sua identidade sexual.
É puro preconceito, isso mesmo, no sentido literal da palavra: pré conceito, discriminamos e temos medo daquilo que não conhecemos. Se formos continuar negando a bissexualidade, então é melhor nos tirar do movimento. Por que dizer que há bissexuais no movimento? Por que chamar um seminário nacional de lésbicas e mulheres bissexuais, se não se discute nunca a bissexualidade? Não parece meio perverso criar a expectativa de que eu que sou bissexual posso ir a esses lugares, mas chegando lá tenho de estar contemplada em falar apenas de uma parte de mim, de meus desejos e das minhas vivências?
Mas não me sinto na obscuridade. Na verdade entrei no movimento me identificando como bissexual. O problema são os outros, eles é que precisam sair dessa hipocrisia. Tenho certeza que há várias companheiras bissexuais que sofrem demais, pois tem de passar por lésbicas para serem aceitas.
Entendo que cada um tem o seu tempo. Mas não posso deixar de lutar por reconhecimento. As lésbicas querem visibilidade para que os seus direitos sejam respeitados? Pois é, nós bissexuais também queremos. Só que com um agravante, temos que lutar pela nossa visibilidade como bissexual na sociedade, e o que é pior, também dentro do movimento.
Eu quero respeito, quero que a bissexualidade seja colocada como ponto de pauta, não só uma sigla a ser mencionada para que as bissexuais se sintam contempladas. Será que nossa identidade, nossas formas de nos relacionar, nossa sexualidade, nossas necessidades na área da saúde e em tantas outras não trazem também questões específicas? Essas devem ser pautadas e discutidas pelo movimento para a formulação de propostas específicas de reivindicações políticas e lutas, mas também para pensar no que é comum às duas identidades.
Para além disso, existem coisas mais profundas para dentro e fora do movimento que devem ser discutidas. A bissexualidade é o nome que damos pra uma série de inquietações nesta vida. Não acredito que exista uma coisa com a qual a gente nasce chamada bissexualidade.
A bissexualidade é um nome que damos para a nossa incapacidade de nos sentirmos confortáveis na distinção entre heterossexualidade e homossexualidade. Mas sabemos que esse não-lugar se expressa de diferentes maneiras, é constituído por diferentes desejos: tanto por gostar de pessoas, quanto por gostar de X coisas em mulheres e em Y coisas em homens, ou sei lá mais por que formas. Mas já que demos esse nome pra essa inquietação, a esse não-lugar, e que nos entendemos como bissexuais, apesar da pluralidade de nossas vivências pessoais, é uma possibilidade de encontrarmos conforto, é importante para nós que as pessoas reconheçam que há gente que não se sente heterossexual nem homossexual.
É tudo muito complexo e deve ser conversado sobre, sem amarras, sem repressão. Algumas amigas lésbicas vieram falar comigo e eu até brinquei que não fui eu que inventei a bissexualidade, me deram o livro da Marta Suplicy, eu li e me identifiquei, agora o problema é de vocês (risos).
Para dentro do movimento é isso: esse lugar nos dá conforto e precisamos que ele seja reconhecido, isso é certo. Mas o mundo não se divide em branco e preto, há vários tons de cinza. Podemos dar um nome pra esses vários tons, mas éimportante reconhecer e respeitar a existência deles. Acho que isso é saudável pro movimento e para nós também: entendermos que Gays e Lésbicas não são blocos homogêneos, eles também têm várias tonalidades. Há diversas classes sociais, cores/raças, idades, além das singularidades, mas as caixinhas nos encaixotam. Elas são importantes para fazer política, mas não podem falar diretamente a linguagem da diversidade. Por isso é saudável reconhecer a diversidade interna de cada caixinha e também a diversidade da sexualidade: há pessoas que não se sentem homossexuais nem heterossexuais.
Que me chamem de Bissexual, que chamem de B, que transformem em letrinha, mas que reconheçam que há algo para além da heterossexualidade e da homossexualidade. Enfim, que reconheçam meu direito a existir.
Tatiana Ranzani Maurano – PE
Regina Facchini – SP
Fabiana Karine de Jesus – RJ "