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“A escola não ensina a viver com a diferença”, diz primeira travesti do Brasil a cursar doutorado

Luma Andrade ganhou destaque ao ser perfilada pelo jornal Folha de São Paulo, na edição do dia 4 de janeiro, que chamava atenção pelo fato de ela ser a primeira travesti do Brasil a chegar ao doutorado, o mais alto nível do mundo acadêmico.

Aos 31 anos, do signo de leão e natural do Ceará, Luma conversou com a reportagem do A Capa. Muito simpática contou o começo de sua vida nas escolas. "Eu apanhava por ficar com as meninas". Ela falou também sobre a dificuldade de uma travesti permanecer no colégio. Por conta dessa realidade, Luma resolveu levantar a tese de como é a vida das travestis no ensino público.

Para ela, enquanto não mudarem o método aplicado e não passarem a tratar bem as travestis nas escolas, pouca coisa vai mudar. "Ela [a travesti] é testada o tempo todo, é chamada de homem. Então, é muito constrangedor, isso acaba excluindo. Eu passei por tudo isso, mas ergui a cabeça e segui. A maioria não consegue", reconhece Luma.  Confira a seguir a entrevista.

Em seu Estado, Ceará, você coordena 28 escolas?
Até o ano passado eram 28, hoje são 26.

Como é a recepção quando você chega a esses colégios?
No inicio foi muito complicado, a presença de uma pessoa diferente na escola ainda causa impacto, ainda não se trabalha a questão das relações interpessoais e a questão da vivência com a diferença, até porque o próprio professor não tem formação para isso. Na universidade eles não oferecem a possibilidade de se trabalhar com a diversidade, aí eles incorporam o que a escola ensina, aquilo que é chamado de normal, que é a questão de viver como hétero. E segundo [Michael] Focault, isso na verdade é um estabelecimento de uma sociedade, mas que pode sofrer alteração.

Hoje você sente que há mais respeito e credibilidade pelo seu trabalho?
A minha presença nas escolas causa estranhamento e ao mesmo tempo as pessoas têm a oportunidade de entrar em contato. Nessa oportunidade, eu tenho que passar a elas outra realidade, porque eles pensam que travesti só faz programa, que é burro, que não freqüenta escola, pois são totalmente marginalizadas.

Você desenvolve um trabalho de pedagogia nas escolas?
Trabalho na 10ª Coordenadoria Regional de Desenvolvimento de Educação e a gente trabalha na parte pedagógica. Mas acaba que nós também trabalhamos com as questões interpessoais.

Você acompanha alguns casos de alunos?
Em um caso tive que intervir. A professora estava chamando os pais de um aluno porque ele tinha um comportamento homossexual na escola, a diretora queria discutir o comportamento do aluno. Sentamos todos juntos, eu apresentei alguns casos e levei informação, pois eles não têm essa informação, a gente não pode culpá-los, pois não há trabalho na formação deles [professores]. Há necessidade de eles terem esse conhecimento, aí sim você pode cobrar.

A escola é um espaço homofóbico?
Depende de quem está a frente do colégio. A mola mestre da escola é o gestor do colégio. Se o gestor da escola é uma pessoa que não tem uma abertura para um ensino diferenciado, mais contemporâneo, uma educação mais liberta, ele vai cometer uma educação tradicional e nisso cabeças rolam, não só das travestis. Dos deficientes, dos negros… Enfim, as diferenças como um todo. Falo isso porque, quando se fala que vai trabalhar a questão dos deficientes, você acaba por excluir e não é essa a ideia. Tem que trabalhar o conjunto. O ideal é que a questão da inclusão não seja ilusória. Eles fazem assim: "vamos incluir os deficientes físicos", aí chega uma verba para se fazer as rampas. Será que só isso é inclusão? Eu entendo que não, porque isso acontece de uma maneira meio que de pena. "Ah pobrezinho da travesti e do deficiente, vamos colocá-lo na escola". 

Falta uma renovação de método?
É exatamente isso. Faltam novas propostas e novos programas, ainda há muita coisa a ser feita. Estive presente na conferência nacional de educação e na ocasião ressaltei essas questões.

A sua tese trata das travestis em escolas públicas. Como você entende essa questão?
Ela é muito complexa. Primeiro, porque a travesti é homossexual. Nessa fase, que às vezes nem sabe que é homossexual, ela é muito xingada, mal tratada. Eu sei por experiência própria. Me xingavam, me batiam, porque eu só andava com as meninas… Então, se você está num ambiente que te trata mal, que não te faz bem… essa não é a proposta da escola, que tem que te fazer bem. A partir do momento que ela [a escola] não consegue fazer isso, você só vê a saída. No caso da travesti que não consegue ser chamada como gostaria, ser xingada, ser considerada um homem que se veste de mulher – e isso está no próprio dicionário: travesti é um homem que se veste de mulher -, tem que haver uma mudança nessa compreensão e nesse pensamento. Quando isso acontecer, a travesti vai se sentir incluída.

O ambiente escolar exclui a travesti?
Dependendo de como ocorrem esses tipos de atitudes citadas, exclui sim. E isso acontece com a maioria, a travesti é testada o tempo todo, ela é chamada de homem, então é muito constrangedor, isso acaba excluindo. Passei por tudo isso, mas ergui a cabeça e segui, mas a maioria não consegue, porque aí vem a prostituição que lhe oferece uma maneira de ganhar dinheiro mais rápido.

Você afirma que é preciso desconstruir a imagem da travesti que só faz programa. Como fazer isso?
Primeiro é dar a elas a possibilidade de frequentar a escola e de se sentirem bem nela. Também é preciso fazer um trabalho de conscientização na escola e tratá-las como cidadãs. A travesti está na escola exercendo um direito que é a educação. A partir do momento que ocorre uma sensibilização da escola em tratá-las como amigas. Mas, até agora não aconteceu nenhum tipo de trabalho de capacitação nacional que trate da diferença nas escolas.

Na seleção dos projetos acadêmicos colocaram o seu nome de batismo. Como você lida com isso?
Isso não me causa nenhum problema. A maioria das pessoas me chama de Luma. Agora, se você me perguntar do que você prefere ser chamada, aí sim, de Luma. Porque ela é a minha identidade. Agora estou pensando em entrar na justiça para mudar o nome.

Qual a sua opinião sobre o projeto ‘Brasil Sem Homofobia’?
Ainda está muito no papel, tive a oportunidade de fazer parte do começo dele [do projeto], que também foi construído por uma travesti aqui do Ceará, a Janaína Dutra, que é uma travesti advogada. Mas assim, tem que transformar aquilo que foi idealizado em realidade. Sei que o processo é difícil, porque não depende só da gente, tem o Congresso Nacional que a maioria é fundamentalista, é uma coisa que vai demorar.

Você relata à reportagem do jornal Folha de São Paulo que houve um diretor de uma escola que espionava as suas aulas e que não queria aceitar você. Além dessa situação, você passou por algum outro tipo de constrangimento?
Não. Ele [o diretor] tinha uma curiosidade de ver o que acontecia porque não confiava. A partir do momento que ele viu que eu dominava a aula, que eu tinha um elo de amizade com os meus alunos, isso mostrou pra ele que realmente eu tinha um trabalho, aí passou a ter outro olhar, viu que era possível [uma travesti dar aula]. 

Como é para uma travesti, em um país preconceituoso como Brasil, chegar ao doutorado?
Eu nem sabia que era a única do Brasil, quem me disse isso foi a repórter [Kamila Fernandes] da Folha. Que bom. Que sirva de lição para as outras, e que façam disso uma coisa normal. Mas eu penso assim, qualquer pessoa, independente do sexo, tem o direito de buscar o conhecimento. Estou fazendo isso.

No momento você está namorando?
Quando eu entrei no doutorado, entrei livre. Porque não consegui uma bolsa, tenho que trabalhar, então por conta disso fica muito complicado. A gente faz como pode, né?

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