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A gente não quer só comida.

Já passa da meia noite, estamos no dia 29 de janeiro, data em que o movimento de travestis e transexuais brasileiro celebra a visibilidade.

De modo bastante sintético, uma pessoa trans é alguém que tem algum grau de dissonância entre o sexo atribuído no nascimento e a sua percepção de ser masculino/a ou feminino/a e/ou sua expressão como tal. Muitas de nós provavelmente já se sentiu “muito masculina” ou “muito feminina” ao se olhar no espelho. Isso fora as broncas da mãe – “você parece moleque!” – que são tão mais dolorosas e marcantes quanto mais o fato de gostar de outra mulher parece não combinar com ser uma mulher. Num mundo que divide de modo ainda bastante rígido homens-masculinos e mulheres-femininas quase ninguém se identifica plenamente com o que se espera de um lado ou do outro. No entanto, quanto mais essa dissonância é perceptível, mais complicada a coisa se torna.Espaços sociais delimitados, imagens estereotipadas e muito pouca visibilidade como seres humanos e sujeitos de direitos.

Pensar na visibilidade trans me lembra algumas situações. A primeira delas, a provocação de uma ativista trans numa oficina do Fórum Social Mundial: como são retratados gays, lésbicas e trans em materiais educativos ou em sites gls? Ela pedia o auxílio de alguém na roda e imitava a imagem de gays e lésbicas em casais felizes. Mas e a pessoa trans? Sempre sozinha/o e numa pose preferencialmente exótica que reflita uma hiper-masculinidade ou feminilidade. Em outra ocasião, Mauro Cabral, filósofo e ativista argentino, disse a milhares de pessoas ao receber um prêmio: “queremos ser respeitados, mas mais que tudo queremos ser amados/as e desejados/as”.

Quando falamos em preservar o direito de não ser excluído/a do sistema educacional ou de não sofrer violência, focalizamos apenas a dimensão mais explícita da violência que nossa sociedade dirige contra pessoas trans. No entanto, há toda uma dimensão simbólica que insiste em fazer estranhar o que aprendemos a classificar como masculino e feminino quando está fora do lugar que aprendemos que lhe cabe: “homem com peitos?!!!”; “mulher masculina?!!!”; “seios e pênis num único corpo?!!!”. O estranhamento, por sua vez, rebate no lugar que se ocupa na escala que classifica mais ou menos humanos.

Amar é próprio do humano. Até onde temos pensado nas relações afetivo-sexuais de travestis, homens e mulheres trans? Não, não estou dizendo que tem que usar camisinha! Isso a gente já sabe, a pesar de não saber onde e como entra a camisinha na vida de transexuais ou para além da prostituição entre travestis. Conheci um homem trans de 39 anos que nunca tinha sequer beijado alguém e só o fez após a mastectomia. Para outro, havia grande preocupação com que o/a parceiro/a não o percebesse em momento nenhum como mulher. Assim como conheci pessoas trans que sentiam maior facilidade de se relacionar com outra pessoa trans. No entanto, no caso de travestis e mulheres trans, relatar o interesse por outra pessoa trans é difícil, pode muitas vezes fazer perder o status feminino e/ou o acesso ao diagnóstico de transexualidade, do qual depende a cirurgia. A cirurgia e/ou as modificações corporais, por sua vez, determinam a “passabilidade”, que tanto evita sofrer agressões gratuitamente na rua como poder transitar ou ser apresentado/a socialmente como namorado/a.

Não temos sequer vocabulário para pensar o amor entre pessoas trans, palavras como hetero, bi ou homossexual referem-se ao sexo biológico, aquele que disseram que pertencíamos ao nascer. Para Menina, 37 anos, namorada de um homem trans, trata-se de interagir com a pessoa a partir do que ela é não colocando a questão corporal em primeiro lugar: “o primeiro beijo foi inesquecível! (.) em relação a algo mais íntimo, não sabia ao certo como me portar, mas ele me deixou à vontade para rolar sem grilos; não o vejo como corpo, é mágico estar com ele: nenhum homem a não ser um trans me fez sentir o que ele faz”. O preconceito de amigos e familiares, segundo ela, apenas mudou de forma em relação aos oito anos em que, sendo uma mulher branca, namorou um homem negro.

Para Jordão, homem trans de 42 anos, desejar outra pessoa está além do corpo, independente de se esta pessoa é trans ou não, mas é necessário que ambos/as estejam bem consigo mesmos/as assim como com o outro/a para que o desejo possa ir para o campo da prática. Xande Santos, 35, presidente da Associação da Parada GLBT de São Paulo e primeiro ativista trans a assumir a presidência de uma entidade mista no Brasil, diz que muitas vezes o desejo pára no corpo, “ter uma aparência masculina com seios é considerado aberração, posso parecer homem, ter voz de homem e até usar um pênis entre as pernas, mas os seios fazem com que seja classificado como mulher”. Segundo ele, muitos homens trans têm de omitir inicialmente esse fato para conseguir uma namorada: conversam pela internet, criam vínculos e apostam no fato de que a simpatia, o jeito e o carinho falem mais alto que as formas convencionais de pensar o corpo.

Encerro minha parte nessa conversa com uma frase do Xande – amamos e desejamos como qualquer pessoa, independente do nome que nos dão – deixando o convite para que pessoas trans ou que amem pessoas trans usem este espaço de comentários para começar uma visibilidade da dimensão afetiva de suas vidas. Desejo um futuro próximo onde a visibilidade trans esteja bem menos limitada a páginas policiais, relatos carnavalescos, políticas de saúde sexual ou textos científicos sobre disforias e transtornos.

P.S. Os nomes de pessoas que não são ativistas foram trocados para preservar sua privacidade. Esta coluna é dedicada ao Xande e à Sandra, que foram meus companheiros de casa durante quase metade dos últimos 10 anos e me possibilitaram conviver com o cotidiano de ser trans, e a Aline, Janaina e Mauro, com quem tenho aprendido muito.


* Regina Facchini é antropóloga e escreve quinzenalmente no Dykerama.com

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