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A quem interessa desqualificar o movimento LGBT?

A vida é dura, sempre me repete  um amigo. Para nós, que lutamos – de diferentes formas –  pelos direitos da população  LGBT, a vida, às vezes, parece mais dura ainda.  Além de enfrentar os homofóbicos  e  fundamentalistas religiosos de plantão, vira e mexe, nos deparamos com petardos vindos de quem, em tese, seria gente aliada.

Exemplos não nos faltam. Ultimamente, parece que virou hobby de muita "bicha vip",  jornalistas gays, DJs ou estilistas falar mal do movimento LGBT em todo lugar: listas de discussão, entrevistas,  sites, blogs. Parece que virou senso comum e até  mesmo um jeito de aparecer (sendo "polêmico"). O "esporte" é dizer que as Paradas do Orgulho são festas vazias, é  criticar as entidades nacionais, é  dizer que o movimento LGBT não representa ninguém, que nada funciona, e por aí vai. Uma apologia do desencanto. Mas com qual objetivo? E esperando quais resultados concretos?  Afinal, quem ganha com isso?

Lendo, como faço diariamente, o site A Capa,  me deparo com uma longa entrevista de Marcelo Garcia, ex-Secretário de Assistência Social do Rio de Janeiro, no governo César Maia (DEM), que acaba de assumir a mesma Secretaria no governo de Custódio Matos (PSDB), em Juiz de Fora.

Marcelo é figura especialíssima. Não o conheço pessoalmente, mas admiro seu trabalho, recebo  e leio sua  newsletter diária. Gestor público assumidamente gay, escreve bem, tem livro publicado, não é sectário, me parece afetuoso, tem  boas referências na área da assistência social,  enfim, é uma figura que contribui para a visibilidade positiva dos homossexuais.

Movimento gay perdido e fracassado
Só que Marcelo Garcia, em poucas linhas, julgou e condenou. Em sua entrevista, detonou o movimento organizado, a militância, a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais), as Paradas, as Conferências participativas, e todos os poucos canais hoje existentes pelos quais se organiza o ativismo em prol dos direitos da população LGBT.

Bem, Marcelo tem o direito de pensar e dizer o que quiser. Isso é inquestionável.  Mas, me pergunto: cabe a um gestor público fazer críticas ao movimento social? Cabe a um técnico, mesmo sendo gay, (mas que não participa do dia-a-dia da luta pelos nossos direitos) decretar o fracasso da militância, das Paradas, da ABGLT e de nossas ONGs?

Antes   de   mais nada,   é bom ficar claro "de onde"  falo, pois ninguém é neutro.  Sou militante, participo do movimento LGBT em São Paulo, sou  apoiador e colaborador da ABGLT. Tenho várias críticas à forma como se organiza nosso movimento. Ele poderia ser  muito mais  enraizado e representativo? Sim, poderia.  Poderia ser muito mais democrático e horizontal?  Muito mais politizado? Sim, poderia – e deveria. Criticar não é problema, é dever.

Mas, as críticas boas são as feitas para construir, para ajudar.  Se forem seguidas de  um engajamento concreto, de  uma  vivência real  na luta, melhor ainda.
 
Desinformação e equívocos
Enfim, vamos ao grão, discutindo algumas  afirmações  presentes  na entrevista:

1."Grupos gays controlados ideologicamente": ao fazer a defesa das ações pro-gay do governo Cesar Maia, Marcelo critica os grupos LGBT, desqualificando-os por ter posição "ideológica". Bom, primeiro que, se é verdade que o governo do DEM no RJ fez ações interessantes para a comunidade, não foi o único e nem o mais importante. Para dar um exemplo simples, o "comitê de garantia de direitos" e a regulamentação da lei contra a homofobia só aconteceram em 2008. Em São Paulo, por exemplo, desde  2005, temos uma Coordenadoria LGBT (a CADS). E, no governo federal, temos o Programa Brasil sem Homofobia desde 2004.  Isso  posto, é desrespeitoso e é usar de má-fé dizer que o movimento é "controlado". Ora, a militância, os ativistas,  têm sim  posição  política, ideológica e/ou partidária. Assim como   o tem o próprio Marcelo Garcia, que não é "neutro"  e tem posições partidárias, políticas, ideológicas.  Como o  governo  César Maia tinha. Como o Custódio Matos tem.   Vivemos em uma democracia.  As pessoas têm o direito  de ter opções políticas  e filiações partidárias. Fica parecendo que esse  ataque, gratuito,  é dirigido a pessoas e militantes que não comungam da mesma filiação ideológica do entrevistado.
 
2."Militância não pode ser emprego, o movimento é elitista":  para quem não é militante é fácil dizer isso. Mas, pergunto: como avançar na luta cotidiana sem pessoas dedicadas integralmente a  esse trabalho? O movimento sindical, o movimento estudantil, o movimento negro, o movimento feminista, o movimento pelos direitos humanos, o movimento pela reforma agrária: todos eles têm pessoas que se dedicam, full time a organizar as ações  e são remuneradas  por isso.  Que mal  há ? Independente deste equívoco conceitual,  existe também muita desinformação. O movimento LGBT é um dos movimentos sociais  brasileiros menos estruturados, infelizmente. Nem a ABGLT tem condições para profissionalizar seus dirigentes, dando-lhes meios para que se dediquem exclusivamente à causa. Os  militantes que conseguem não ter outras atividades  profissionais são muito  poucos, mal remunerados, e vivem, precariamente, de projetos instáveis de suas ONGs. A ABGLT, por exemplo,  não tem sede fixa, telefone, assessor de imprensa nem sua direção profissionalizada. E mesmo assim, faz muito pela nossa cidadania. Quem acompanha o assunto sabe disto. São  demandas e encaminhamentos diários.
 
3."As paradas são eventos de festa, não de luta": essa afirmação é recorrente, virou "arroz de festa". As Paradas nunca se propuseram a ser passeatas tradicionais, caretas. São eventos de visibilidade massiva.  Momento de juntar luta e festa. De mostrar que existimos, somos milhões, alegres, coloridos,  que somos diversos. As Paradas trazem para a agenda pública do país, e de cada cidade, a urgência  de se promover a cidadania plena para todas as pessoas.   São  sinônimos de diversidade e combate ao preconceito. Claro que o  objetivo do movimento  é tornar as paradas cada vez mais politizadas, ampliar o alcance e a força do  discurso reivindicatório, propriamente dito.  Agora, dizer que elas são "fracassos"?   O que é isso? A Parada do RJ é um fracasso? A Parada na Paulista é um fracasso?  As quase duzentas Paradas brasileiras são um sinônimo de fracasso da luta LGBT? 
 
O melhor teste é o da prática
Haveria  outras afirmações a problematizar e refutar na entrevista do Marcelo, mas paro aqui.  Afinal, considerando suas afinidades políticas, é previsível que  ele não goste das Conferências participativas  promovidas pelo governo federal (em dezenas de áreas), que mobilizam milhões de pessoas no Brasil e são exemplo de  controle social nas políticas públicas. E é engraçado que ele afirme que as ONGs gays são controladas pelos governos que as financiam. Será que o movimento LGBT carioca era controlado pela Prefeitura? Mas Marcelo não era Secretário desta mesma Prefeitura?

Agora,  inacreditável  mesmo é assistir a  um gay menosprezar a importância da  I Conferência Nacional  LGBT, aberta pelo próprio Lula, que reconheceu  nossos direitos e aprovou centenas de propostas – uma referência para o mundo.

O que mais incomoda, não a mim, mas, aos   ativistas  brasileiros (e não somos tantos assim),  são  as críticas tão ácidas  e superficiais ao trabalho do movimento LGBT. Afinal, somos relativamente jovens, ainda frágeis, com poucos recursos  e enfrentamos forte oposição do fundamentalismo. E já fizemos muito.

A maioria de nós trabalha voluntariamente. Não passamos de poucas centenas em todo o Brasil. Ainda assim, não houve uma conquista  ou denúncia que não tivesse participação dos grupos e militantes  organizados,  desde o  final dos anos 70.

Não haveria leis municipais, não haveria Paradas do Orgulho, não haveria leis estaduais, não haveria embriões de políticas públicas não haveria tanto espaço "gls"   na mídia,  se não houvesse as ONGs de base, os Fóruns estaduais, e principalmente,  nos  últimos anos, nossas redes nacionais (ABGLT, Antra,  ABL,  LBL, E-jovem,  Rede Afro).

Sim, temos muitas falhas e problemas. Queremos ser mais fortes, melhores, mais efetivos. Os inimigos são poderosos. Por isso, pergunto: a quem interessa desqualificar nossas ações? A quem interessa detonar nosso movimento?

Quem ganha quando nós mesmos nos apedrejamos? Quem ganha quando os próprios LGBT desconstroem o movimento realmente existente?  Não precisamos de pedras.  O que precisamos é de mais gente no front da guerra contra a homofobia. Queremos ajuda.

Tomara que o Marcelo Garcia venha a se somar ao esforço de tanta gente, Brasil afora. Quem sabe, morando em Juiz de Fora, ele não se torne  um colaborador do Movimento Gay de Minas, e comece a conhecer mais de perto as agruras e delícias do real movimento gay brasileiro. Quem sabe ele não acabe  não se somando na organização  da Parada de Juiz de Fora e tome contato com o cotidiano de uma ONG gay. Vai poder falar do movimento com mais propriedade  se fizer isso.

Quanto mais gente, melhor. Criticar é bom, mas fazer,  todos os dias,  é melhor ainda.

Venha conosco, Marcelo Garcia!
 
*Julian Rodrigues, é do Instituto Edson Neris (SP), do Fórum Paulista LGBT, da ABGLT e do setorial nacional LGBT do PT.

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