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A revolução silenciosa das transexuais no Judiciário paulista

Que a mudança de prenome de travestis e transexuais é um calvário, todo mundo sabe.

+Transexual tem o direito de usar banheiro feminino

Relatos e matérias jornalísticas mais de uma vez chamaram a atenção da opinião pública para isso, tanto que, em pesquisa de julgados realizada em 2012, o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP concluiu que transexuais enfrentam o dobro da dificuldade que não transexuais para conseguir a mudança de nome nos tribunais estaduais – o índice nacional é de 30% de negativas para transexuais, enquanto para outras pessoas (de nome sexualmente ambíguo ou inverso a seu gênero) esse índice é de 15%.

O que pouca gente sabe, porém, é que esse cenário tem mudado – a passos lentos, é verdade, mas tem.

Em 2013, o Tribunal de Justiça de São Paulo, considerado o mais conservador do país, com uma taxa de rejeição de pedidos de transexuais de 1 em cada 3 até junho de 2012, passou a apresentar decisões que dispensam a cirurgia para mudança de nome. Apesar de ainda encontrarmos decisões em sentido contrário, já começam a se consolidar não mais como exceção decisões progressistas como essas. Exemplos não faltam: há julgados nesse sentido pelo menos nas 4a, 5a, 7a, 8a e 10a Câmaras de Direito Privado do TJ-SP.

Aos poucos, esses julgados servem de precedente para fundamentar o julgamento de casos semelhantes, o que cria um efeito bola de neve, de modo a isolar e tornar cada vez mais raras as decisões conservadoras que impediam a mudança de nome de transexuais não cirurgiadas.

Consequentemente, começa a mudar a cultura jurídica dos juízes paulistas, que se vêem em alguma medida vinculados àquilo que é decidido por seus pares mais velhos e experientes da segunda instância, conhecidos como desembargadores. Outro resultado disso que deverá ser observado é a mudança das próprias transexuais, que, desobrigadas a se cirurgiarem para ver sua identidade de gênero respeitada, já têm se negado a atender todas as condições impostas pelo Judiciário paulista, que não raras vezes são extremamente absurdas e pouco justificáveis dentro da ordem estabelecida pela Constituição de 1988.

A mudança, portanto, não se limita ao Judiciário; ao contrário, o que estamos presenciando é uma mudança de auto-estima. Exige-se respeito e não se aceita nada menos que isso.

A conquista da vez e que merece ser celebrada também veio pelo Geds, que ajuiza ações de mudança de nome e sexo gratuitamente para travestis e transexuais de baixa renda residentes em São Paulo.

No mês passado, a 10a Câmara de Direito Privado do TJ paulista, ao julgar o Agravo de Instrumento de número 2083427-36.2015.8.26.0000, dispensou uma transexual de ter que apresentar laudo médico para atestar sua transexualidade. A exigência tinha sido feita pela juíza Renata Pinto Lima Zanetta, da 2a Vara de Registros Públicos do Fórum João Mendes, tipicamente conhecido por ter consolidado há alguns anos, por meio do juiz Guilherme Madeira, posicionamento favorável a travestis e transexuais.

A interessada, porém, não dispunha de laudo médico, nem pretendia obtê-lo, pois não via necessidade de uma terceira pessoa atestar a realidade que ela já vivia há muitos anos. Como alternativa, foram oferecidas quase 50 páginas de argumentação e documentos a respaldar o relato da interessada, mas a juíza foi irredutível: ou apresentava o laudo em dez dias, ou o processo seria encerrado imediatamente. Não quis saber nem de audiência para ouvir a interessada e suas testemunhas, sob a alegação de que a "transexualidade não comporta prova oral".

É como se a juíza soubesse mais sobre a transexualidade que a própria pessoa que vive essa identidade. Não faz sentido. A interessada entrou com recurso e conseguiu que o TJ-SP se inclinasse a seu favor. É risível que o relator, desembargador J. B. Paula Lima, tenha tido que falar o óbivo: não se pode obrigar alguém a realizar perícia médica contra sua vontade, de modo a lhe causar constrangimento e humilhação. Ora, se a Lei de Registros Públicos condiciona a mudança de nome à comprovação de constrangimentos e de apelido público e notório, de onde os juízes tiraram a idéia de que a transexualidade precisa "ser provada" ou de que ela só pode "ser provada" por médico? Podemos especular sobre culpados, mas esse não é o objetivo deste artigo.

Quero me ater à noção de que, hoje, vivemos um momento sério de mudanças e que tem resultado em maior respeito às pessoas trans – o que não significa que tudo esteja maravilhoso. Transexuais querem e têm o direito de ter um registro civil que espelhe sua realidade de vida. Mas, para tanto, essas pessoas não podem ser obrigadas a passar por mais constrangimentos. Estamos falando de um direito, não de um favor do Estado.

Felizmente, agora, podemos exigir também que a mudança de nome não seja condicionada à apresentação de um laudo médico.

Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde, entre 2009 e julho de 2015, fundou e coordenou o Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade, e onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também atua como advogado no Centro de Cidadania LGBT Arouche, da Prefeitura de São Paulo; e escreve quinzenalmente sobre Direitos no portal A Capa. www.thalescoimbra.com.br

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