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Afinal, o que determina a orientação sexual de alguém?

Questão das mais cabeludas que um psicanalista pode enfrentar: afinal, o que determina a orientação sexual? Temos visto no Brasil vários grupos conservadores se opondo a educação para a diversidade sexual nos planos municipais de ensino, mas será mesmo que a educação, a cultura e a sociedade têm o poder de determinar a sexualidade de alguém?

Antes de entrar propriamente na questão é preciso pensar sobre um dos grandes debates dentro da psicanálise: se trata da tradução do termo alemão Trieb, que alguns traduzem como "instinto" e outros como "pulsão".

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Instinto é o que acontece com os animais: diante de estímulos ambientais específicos e pré-determinados, se o animal já tiver condição de maturação suficiente e estiver em condições adequadas, terá reações específicas e também pré-determinadas. Claro que existem pequenas variações no estímulo externo e também na reação do animal, um tanto da evolução das espécies passa por essas pequenas variações, mas grosso modo a situação já está dada a priori.

Por sua vez o termo pulsão remete ao pulsar, ao movimento propriamente dito. Aquilo que se torna objeto da pulsão não é determinado a priori, tampouco é determinado como este movimento será percorrido. Nem o objeto que satisfaz nem a forma de satisfação são pré-determinados. Pulsa-se.

Ou seja, o objeto e o movimento em si não são pré-determinados de antemão, constituindo um ponto essencial na teoria freudiana sobre a constituição psíquica do ser humano. E isto vai desembocar em como Freud entende o recém-nascido: cada pequeno bebê seria um perverso polimorfo. Perverso polimorfo porque é capaz de se satisfazer com qualquer objeto, as formas de satisfação com esses objetos e as áreas corporais excitáveis por estes não estão ainda determinadas, podendo ocorrer satisfação de diferentes maneiras e em diferentes áreas do corpo.

Só que para continuar a entender a teorização freudiana é necessário levar em conta um fator imprescindível, mas que é ignorado por críticos da psicanálise e comumente não explicitado por psicanalistas quando escrevem sobre a sexualidade do ponto de vista da psicanálise: o inconsciente.

A constituição de uma pessoa necessariamente pressupõe, dentro deste corpo teórico, que um tanto psíquico da pessoa ficou fora de alcance, inatingível, inacessível a ela mesma. O Eu, portanto, é sempre apenas uma parte da pessoa, nunca sua totalidade, apesar da sensação que todos os humanos têm de que se é uno, de ser uma pessoa coesa.

Essa sensação de unidade é necessária para vivermos e o Eu tem uma função organizadora do ser. Mas sempre fica algo de fora. Isso que fica de fora, mas que também constitui a pessoa, continua a existir e a se fazer presente, enviando sinais através de sonhos, atos falhos e sintomas, mas que não se resume a estes sinais. Inconsciente ou Isso (prefiro a tradução do "Es" alemão para o "Isso" em português, ao invés do estranho "id"), o que está para lá, inacessível, mas que também é constituinte do ser, também o determina, é peça chave para se entender quando um psicanalista fala que houve um momento de "escolha" da orientação sexual. Já deve ter ficado óbvio neste ponto que o termo "escolha" não é nada consciente, muito menos provocado, guiado ou intencionalmente determinado interna ou externamente.

Esta teoria é complexa e muito maior do que é possível resumir neste espaço curto de uma coluna, mas o que espero que tenha ficado claro é: não somos animais pré-determinados, tampouco somos senhores absolutos de nós mesmos, menos ainda totalmente moldados pela sociedade ou cultura. O que determina uma orientação sexual é muito mais complexo e muito menos óbvio do que se imagina. O importante a frisar é: a orientação sexual é impossível de ser determinada conscientemente por aqueles que deram vida ao bebê, pela sociedade, ou pela própria pessoa. O inconsciente não é passível de controle, muito menos passível de ser moldado. O pulsar e a constituição psíquica se darão alhures, fora de onde é possível exercer controle ou poder.

Esta é uma das razões pelas quais mudar orientação sexual é impossível. A pessoa pode, claro, escolher viver segundo regras sociais e não expressar sua sexualidade (e isso terá custos elevadíssimos), mas mudar sua orientação não. Isto não está sob seu poder, nem sobre o poder de qualquer outra pessoa ou instituição.

A questão é muito mais complexa (sequer toquei em identidade de gênero, relação do corpo com o psíquico, Sujeito do Inconsciente, Édipo e castração, etc), mas fica aqui uma indicação para quem quiser ir saber mais sobre o que a psicanálise pode dizer sobre este enigmático processo de sexuação humano. Neste processo inconsciente, que ocorre muito cedo na vida de um ser humano, será edificado tudo o que virá adiante. Ter experiências diversas ou não exercer a sexualidade segundo isto que foi constituído é possível, mas não é possível mudar as fundações daquilo que se tornou base.

Este é um dos motivos pelos quais tentativas estúpidas como a de grupos conservadores de barrarem debates escolares sobre sexualidade, como tem acontecido em várias cidades do país com os planos municipais de ensino, serem infrutíferas: ninguém pode determinar ou até mesmo influenciar a sexuação humana, ela se dá à revelia da moral e dos costumes, da religião, etc, tendo suas próprias regras, o que significa que a sexualidade tem sua própria potência e caminhos diversos. Respeita a diversidade é, portanto, um respeito ao próprio ser humano.

Leandro Salebian é psicólogo (CRP 06/99001) graduado pelo Instituto de Psicologia da USP. Já trabalhou na área da saúde mental em um CAPS Adulto e hoje se dedica exclusivamente ao trabalho em consultório particular. Segue sua formação estudando autores da Psicanálise e tem um olhar crítico e atento às questões de gênero e diversidade sexual. Acesse também seu site ( www.leandrosalebian.com.br )

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