Parece que o deputado-pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) ainda não se "curou" de sua obsessão pelos homossexuais. Depois de escrever que estaríamos armando uma "ditadura gay" no País e gostaríamos de expulsar Deus do Brasil e de ajudar a promover uma audiência pública sobre a "cura" da homossexualidade, Feliciano voltou à baila, dessa vez para ecoar os anos 80 e chamar a AIDS de "câncer gay" – e responsabilizar os homossexuais pela doença.
A ultrajante acusação se deu durante discurso proferido durante o congresso dos Gideões Missionários. A informação foi divulgada nesta quinta-feira (20) em um artigo do deputado gay Jean Wyllys (PSOL-RJ) para o site Brasil247.
Para Wyllys, a "doentia obsessão" de Feliciano mostra "o nível de ódio que o discurso dos fundamentalistas religiosos vem atingindo e o perigo que eles podem representar para a nossa democracia se os poderes públicos (executivo, legislativo e judiciário) não tomarem as devidas providências".
Sem papas na língua – ou nos dedos -, o deputado do PSOL retratou com palavras duras a participação do Pr. Feliciano no citado congresso: "Como um psicótico em surto, com direito a lágrimas em momentos estratégicos e trilha sonora caótica que evoca urgência e dramaticidade […], o discurso de Feliciano seria de apavorar qualquer pessoa que não seja de coragem. Com seu proselitismo hipócrita, ele tem, como única missão – em seu discurso assim como na Câmara dos Deputados – atacar as religiões minoritárias e a cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT)".
Wyllys também argumenta que o parlamentar evangélico suprime informações sobre a AIDS, como a mudança no perfil dos infectados: "Desde o surgimento da AIDS na década de 80, o perfil dos infectados se modificou drasticamente, há muito tempo deixando de ser uma doença restrita aos LGBTs e passando a atingir cada vez mais jovens, mulheres e idosos heterossexuais. As mulheres respondem por 48% das novas infecções e os jovens com idades variando entre 15 e 24 anos, por 42%. Somente entre 2000 e 2010, o percentual de pessoas com mais de 60 anos infectadas, subiu 150%", escreveu.
A manifestação de Wyllys gerou uma resposta de Marcos Feliciano em sua conta no Twitter. "A sexualidade libertina, como forma de expressão, pode gerar DST/Aids e alguns militantes pregam essa liberdade essa é minha indignação", escreveu o evangélico. "AIDS: A doença apareceu desde 1977 em homossexuais por transmissão sexual, depois através de usuários de drogas e se espalhou pelo mundo", continua Feliciano. "A história da AIDS começou sim com homossexuais, isto é fato e ninguém pode negar é história e ponto final. Hoje independente da história é caso de saúde pública, portanto de todos nós, e pode contaminar a todos. AIDS é um câncer social", finalizou.
Questão histórica
Da parte deste repórter que vos escreve, deve-se dizer que talvez falte clareza histórica ao deputado-pastor Marcos Feliciano e, por isso, cabem alguns esclarecimentos:
1. Em primeiro lugar, não é verdade que a AIDS apareceu em 1977. O caso de positividade para o HIV mais antigo conhecido é de 1959, de um homem da cidade de Kinshasa, na hoje República Democrática do Congo. Outra amostra bastante antiga é de uma mulher da mesma cidade, morta em 1960. A teoria mais aceita é que a origem do HIV é o SIV – vírus da imunodeficiência símia -, que migrou de dois grupos de chimpanzés – um resultou no HIV-1 e outro no HIV-2 – para os seres humanos e sofreu mutação, segundo estudo publicado em 2008 na revista Nature.
2. O mesmo estudo apontou que o vírus começou a se espalhar pelo continente africano durante os anos 60 – mas o HIV seria bem mais antigo que isso. A pesquisa sobre as duas amostras mais antigas do vírus, de 1960 e 1959, indicou que elas provieram de um mesmo hospedeiro humano, que teria vivido entre 1884 e 1924. O HIV teria, muito provavelmente, surgido em 1908 – contando, portanto, com mais de 100 anos de existência. Embora seja uma "teoria da conspiração" bastante conhecida, o contato do SIV com o organismo humano na África que originou o HIV não se deu por sexo entre humanos e chimpanzés, mas provavelmente por um hábito bastante disseminado na região, que é o de caçar e comer carne de símios. Posteriormente, fatores histórico-culturais desencadearam a epidemia africana via contato sexual e/ou por uso de drogas.
3. Em artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, também foi traçada a rota do HIV: depois de ter nascido na África no começo do século 20 e se espalhado pelo continente em meados dos anos 60, chegou ao Haiti por volta de 1966, provavelmente trazido nos organismos de trabalhadores haitianos contratados pela atual República Democrática do Congo. Do Haiti, passou para os Estados Unidos, provavelmente em torno de 1969, por meio de um único portador.
4. Uma vez nos Estados Unidos, o vírus se espalhou em território americano e daí para o mundo. Em 1981, foram diagnosticados os primeiros casos a partir de um surto de sarcoma de Kaposi – e a comunidade gay e de usuário de drogas foram as primeiras impactadas. A nova doença recebeu por isso o nome de GRID – gay-related immune deficiency (ou imunodeficiência relacionada aos gays). Na sequência, como todos sabemos, houve a descoberta do causador da nova doença em 1983 (o HIV), esta foi rebatizada como AIDS e, progressivamente, houve a expansão da pandemia para outros grupos populacionais.
5. No entanto, conforme indicam as mudanças nos perfis de atingidos pela AIDS informadas por Jean Wyllys, mas também seu próprio histórico como relatado em 1, 2, 3 e 4, mesmo considerando o alto impacto que a pandemia teve – e ainda tem – na comunidade homossexual, o vírus não apenas não escolhe orientação sexual para ser transmitido, como dizer que a AIDS é "responsabilidade dos homossexuais" é uma incorreção histórica. A AIDS é uma zoonose, como tantas outras que a humanidade conheceu – impossíveis de serem totalmente evitadas, dado nosso contato com animais e o consumo de carne – que surgiu casualmente e por infelicidade. Seu causador, o HIV, calhou de ser transmitido por via sexual, assim como outros vírus são transmitidos pelo toque ou pelo ar.
Conclusão
Resumindo, portanto, AIDS não é "câncer" de ninguém, não é "culpa" de ninguém e nem tem relação íntima com "libertinagem" ou "promiscuidade", uma vez que também não é o número de vezes que se pratica o sexo que define quem poderá ter HIV ou não.
Embora se saiba que a redução de parceiros contribua para diminuir o risco de adquirir o HIV, isso se dá por um motivo simples: reduzem-se as chances pelas quais o vírus pode adentrar o organismo, uma vez que a principal via é a sexual, da mesma forma que estar em um lugar arejado reduz as chances de pegar tuberculose. O uso da camisinha aí se insere, uma vez que ela evita a infecção por impedir o contato com fluidos sexuais.
Não deriva daí, porém, que haja "condenação" em transar com muitas pessoas ou várias vezes, já que basta apenas uma para que o vírus se instale. A questão, portanto, é meramente estatística – e não moral.
Finalmente, é preciso considerar que os soropositivos são pessoas plenas de direito e respeito, que não estão sendo "punidas" por qualquer comportamento. Apenas encontraram o vírus em determinado momento de suas vidas. Discursos como o de Marcos Feliciano não apenas atacam os gays, mas também essas pessoas, que não precisam que ninguém torne suas vidas mais difíceis.