“A Indeterminação de sentidos no Ulysses de James Joyce”: esse era o nome da tese de doutorado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em fevereiro deste ano. Mas o mais importante era o nome da autora: Amara Moira. Primeira pessoa transgênero a defender por lá um doutorado usando o nome social, de acordo com a própria Unicamp. Isso foi mais do que um novo título para a travesti, professora e escritora Amara. “A Unicamp fez questão que eu usasse o nome social. Nos trâmites todo foi Amara e é uma mensagem para a sociedade de que esse lugar [a academia] é nosso. Existe uma burocracia para impedir o reconhecimento dos nossos nomes, mas eles [Unicamp] fizeram a parte deles para que a gente pudesse se sentir mais confortável.” E realmente existe uma burocracia. Quando a reportagem chegou em sua casa para entrevistar Amara, a agora doutora estava atualizando seu currículo Lattes [acadêmico] com a nova conquista. No entanto, no topo da página, constava outro nome. Quatro letras que acompanham – e causam constrangimento – há anos. “No Lattes está com meu nome de registro. A burocracia é absurda para mudar”, explica Amara. Mas ela está firme. Sabe que o excesso de regras não é o único desafio que cruza seu caminho e tem certeza de que isso não vai interromper sua trajetória e luta diária. E durante os 5 anos de doutorado, foram muitos os desafios. Foi nesse período que Amara começou sua transição de gênero e diversos questionamentos vieram junto. “Costumo dizer que a universidade me aceitou trans, mas não me aceitou feminista. Senti uma cobrança para que eu fosse produtiva, mas uma produtividade dentro dos moldes da universidade.” E Amara queria mais do que um projeto acadêmico. “Queriam um projeto que fosse só uma demonstração gratuita de inteligência? Está aqui, passei em primeiro lugar. Mas agora isso já não me bastava mais porque meu corpo era alvo de violência, então minha existência estava em jogo e eu precisava usar o que eu tivesse de ferramentas para inverter e transformar essa situação injusta. Então começo a fazer da militância minha prioridade. Quando eu começo a produzir em outras engrenagens e conectar engrenagens, começam a se sentir incomodados. A universidade não me reconhece como produtiva porque é fora da minha área de atuação. Qual a minha área de atuação?”, reflete. Amara passou a se dedicar a estudar autoras trans, escreveu um livro sobre sua experiência como prostituta E se eu fosse puta, escreveu capítulo de livro sobre seu processo de transição, entre outros textos sobre reflexões transfeministas. Chegou a pensar em desistir do doutorado quando viu que seu projeto maior era outro. “Não desisti porque eu sabia que tinha uma simbologia grande para a comunidade trans e para o mundo. Era uma mensagem para a sociedade. Uma mensagem de que a gente pode estar naquele espaço, podemos produzir conhecimento, conhecimento considerado válido e legítimo e tensionando o que é produzido ali. A gente deixa de ser só rato de laboratório e objeto de estudo e passa a ser sujeito da produção intelectual deste País, desta sociedade.” A mensagem foi dada. E Amara ocupa hoje mais um espaço. A sala de aula. Minha presença na sala de aula rompe com narrativas construídas sobre trans como seres sem caráter e depravados. Não somos. Como professora de literatura de um cursinho, ela sente que pode contribuir para uma grande mudança ali também. “É um espaço de transformação, é um espaço de que eu não posso abrir mão. Ali estou dialogando com uma geração de futuros pensadores e transformadores da sociedade. Mostro que podemos ser referência e que podem aprender com a gente. Isso rompe com as narrativas que foram construídas a vida inteira sobre trans como seres que não têm caráter, têm a vida fácil, são depravados. Não somos.” Para o futuro, ela planeja outros livros e pensa em um pós-doutorado, dessa vez sobre literatura trans. Um trabalho que vai seguir as suas regras. Sempre com suas palavras e com seu nome: Amara. Reportagem da jornalista Ana Ignácio, originalmente publicado no site HuffPost Brasil. Foto de Caroline Lima