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As novas famílias e o fundamentalismo religioso

Fundamentalistas religiosos monoteístas (judeus, cristãos e mulçumanos) recorrem às Escrituras Sagradas, notadamente o livro do Gênesis, reconhecido pelos três ramos do monoteísmo, para desqualificar e condenar novos tipos de famílias, como a família formada por pares do mesmo sexo e crianças.

Recentemente, no programa da TV Globo, “Sagrado”, o xeique Armando Hussein Saleh, abordou a questão das novas famílias, citando a família homossexual como instituição contrária às Escrituras Sagradas. Declarou: “Em nenhuma das Escrituras Sagradas cita-se outros tipos de família, além da formada por homem, mulher e filhos. Hoje, com as mudanças de comportamento da sociedade, foi sendo incorporada como famílias formadas por homossexuais, onde dois homens ou duas mulheres, se autointitulam família e aptos para serem pais de crianças adotadas”.  E pergunta: “Como fica a estrutura psicológica dessas crianças que pedem um ‘verdadeiro’ parâmetro de família?”

Primeiro eu gostaria de deixar bem claro que as Escrituras Sagradas, principalmente no que diz respeito às cristãs, formada por Primeiro (Antigo) e Segundo (Novo) Testamentos, estão longe de relatarem modelos edificantes de família! No mesmo livro do Gênesis, tão idolatrado pelos fundamentalistas encontramos, logo no início, um fratricídio (Gn 4). Em seguida, no capítulo 6, outro mau exemplo: anjos casando-se com mulheres e tendo filhos “mistos” os “Nefilim”. No capítulo 19, o Gênesis relata que as filhas de Ló, sobreviventes da destruição de Sodoma e Gomorra, embebedaram seu pai e tiveram relações com ele, dando início aos povos moabitas e amonitas. Dois capítulos depois, Abraão expulsa seu filho Ismael, ainda criança, com sua mãe egípcia Agar, ambos só não morrem de fome e sede por intervenção divina. O livro do Gênesis também relata a intenção dos irmãos de José, preferido do seu pai Jacó, de matá-lo. Impedidos por Rúben resolvem vender o irmão como escravo aos ismaelitas; antes, porém, o próprio Jacó, cujo nome significa “Enganador”, suplantou seu irmão Esaú, roubando-lhe o direito de primogenitura.

                       

Mais uma vez, o problema central aqui é a questão da interpretação literal das Escrituras, algo arbitrário, anacrônico, aniticientífico e um verdadeiro “pecado” contra o “espírito” das mesmas Escrituras! “A letra mata”. Karen Armstrong em “A Bíblia: uma biografia”, Ed. Zahar escreve: “É crucial observar, por exemplo, que uma interpretação exclusivamente literal da Bíblia é um desenvolvimento recente. Até o século XIX, muito pouca gente imaginava que o primeiro capítulo do Gênesis era uma descrição factual das origens da vida. Durante séculos, judeus e cristãos apreciaram uma exegese extremamente alegórica e inventiva, insistindo que uma leitura inteiramente literal da Bíblia não era possível nem desejável”.

O fundamentalismo e sua leitura literal das Escrituras é uma perversão e uma traição de uma firmada tradição hermenêutica e exegética das Escrituras! Leva à enganos “toscos” e às interpretações equivocadas daqueles textos como fazem os religiosos monoteístas fundamentalistas de hoje. O xeique Armando Hussein Saleh e seus pares religiosos como pastores e padres “pecam” contra as mesmas Escrituras que chamam de “Sagradas”. Fazem-nas de totem e seus textos de tabu, almejando com isso que toda a sociedade humana siga os preceitos ali elencados, desrespeitando um dos princípios da Ciência Política adotado no Brasil e em outros países: a laicidade do Estado.

O Estado laico e democrático garante aos cidadãos que nele vivem o direito de escolha em matéria religiosa, a liberdade de expressão e a garantia de zelar por esses cidadãos, todos eles, inclusive os “diferentes” (antropologicamente chamados de “marginais”) e conceder-lhes cidadania e não negar-lhes nenhum direito concedido a outrem. Isso garante a fala, ainda que eivada de preconceitos do xeique, pastores e padres, que condenam, a partir de uma interpretação equivocada das Escrituras, as famílias homoparentais. Todavia, o mesmo Estado, por ser laico e por ser democrático, deve garantir às famílias homoparentais não apenas o direito de existirem como também o dever de mantê-las em pé de igualdade social com os outros tipos de famílias naquele contexto social.

Já escrevi aqui mesmo neste espaço sobre o Projeto de Lei 2285/07, o “Estatuto das Famílias”, da autoria do deputado federal Sérgio Barradas (PT/BA). Tal PL visa contemplar as inúmeras configurações familiares no contexto brasileiro; sim, inúmeras, pois reduzir o conceito de família a papai, mamãe e filhos não corresponde à realidade social brasileira, como nega às outras configurações direitos inalienáveis e isso é, segundo nossas leis, inconstitucional, pois nossa Carta Magna garante o direito igual para todos e todas. As famílias homoparentais existem e o Estado brasileiro tem o dever de reconhecê-las e ampará-las, concedendo-lhes todos os demais direitos garantidos à família “tradicional”, que não é a única, mas uma das configurações atuais de família.

A PL 2285/07, visa saldar uma dívida social que só faz crescer no Brasil. Existem, por exemplo, entre nós, famílias formadas por sobrinhos e tios, avós e netos, um pai e filhos ou uma mãe e filhos. E o casal onde ambos ou apenas um deles são estéreis, não são família?! Sim, são famílias, bem como as famílias formadas por casais do mesmo sexo com ou sem filhos adotivos ou naturais de um dos parceiros!

                             

O que acontece no Brasil neste momento de amplo debate sobre tais questões – na mídia, nas ruas, nas casas de leis – é a tentativa por parte dos religiosos fundamentalistas de impor a toda sociedade a sua visão e a sua interpretação do “certo/errado”, partindo de sua fé. Isso é um assalto do religioso ao laico, um desrespeito à nossa Constituição, conhecida por seu desejo de igualdade e justiça para todos e todas como “Constituição Cidadã”. É ilegítimo, portanto, vou além, é ilegal a tentativa por parte dos religiosos fundamentalistas da imposição de seus valores e opiniões à sociedade em geral, uma vez que tais visões deixam à margem do direito, milhões de pessoas!

Por fim, aconselho aos religiosos fundamentalistas que recorram a outras fontes quando quiserem tratar de família! Vamos combinar que a Bíblia, neste caso específico, está longe de ser exemplo! Não conheço um pai ou mãe homossexual capaz de fazer aos seus filhos o que Abraão fez com Ismael: expulsá-lo ainda criança de casa, entregando-o à morte!

* Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro – uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva -, desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã. Seu e-mail é: revretamero@betelrj.com.

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