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Através do Espelho: A arte de se reinventar

Algumas pessoas chamariam esse texto de “saindo do armário”, “se assumindo”, “quebrando o aquário”, “saindo do casulo”… Enfim, nomes aos montes, eu prefiro chamar de “A arte de se reinventar – a transição”, porque quando você finalmente se liberta tem que aprender novamente a se enxergar, a se sentir, a se ouvir, a se experimentar, começar de um novo início, de outra forma e por outra estrada. E isso, para a maioria das pessoas, não é tão simples. Pra mim, não foi.

Não sei exatamente como tudo começou, tem gente que sabe precisar a data, outras lembram com requintes de detalhes a primeira paixão lésbica. Eu, bom, não sei dizer se meu primeiro amor lésbico foi ainda na infância, por uma linda menina do pré que se chamava Lígia e meus sentimentos por ela eram muito fortes (hoje tenho consciência disso), se meu despertar gay foi a “doentia” paixão que sentia por uma das minhas melhores amigas de ginásio e depois de colegial (era recíproco, mas só me dei conta que aquele sentimento não poderia ser apenas amizade muitos anos depois) ou se meu desabrochar para o mundo homossexual ocorreu por uma arrebatadora paixão pela minha melhor amiga de Faculdade, sem que eu me desse conta, mas que me fez questionar pela primeira vez e me obrigou a olhar para dentro de forma franca e honesta.

Me vi entre lágrimas e desespero no início, mas me forcei a me ver. Porém, meu primeiro contato, o primeiro beijo, a primeira transa, o primeiro relacionamento lésbico, ocorreu com uma quarta pessoa, que realmente amei e que hoje superados todos os conflitos e traumas de nossa separação por ambos os lados, temos contato e nos respeitamos.

O engraçado era que, entre uma paixão lésbica (sentimentos que na época eu desconhecia) e outra, eu engatava um relacionamento heterossexual atrás do outro, tive milhares de namorados, fui muito desejada e bem tratada por todos eles, recebi serenata, inúmeros presentes, diversas cartas e declarações de amor e realmente amei três homens na minha vida, um na adolescência, um na juventude e um que se estendeu por minha maturidade. Tive a honra de me casar com ele, o homem que mais amei, o mais incrível ser humano que poderia tocar meu corpo, meu coração e que me presenteou com a maior dádiva da minha vida, minha filha.

Ironias do destino, me descobri casada, me assumi para mim (foi demorado, dolorido e nada fácil) e me aceitei bissexual (sei que existem muitos julgamentos a respeito da bissexualidade, mas prefiro não pensar com rótulos, afinal, não somos remédio), fato era que estava dentro de uma relação estável heterossexual, totalmente oposta a minha nova realidade e finalmente entendi o significado da palavra desespero, o sentido do conceito angustia e o peso da palavra dúvida.

Só quem viveu o período de “transição” pode relatar quanto isso é complicado, pelo menos para a maioria das pessoas. Você cresce numa educação heterossexual, somos criados para termos desejo pelo sexo oposto, a criança não tem o direito de “sair do armário”, somos educados a acreditar que isso é o “normal”: meninos com meninas. De repente a vida nos dá uma rasteira e nos coloca à prova, nos joga na cara todas as verdades de nossa criação e nos obriga a questionar quem somos.

Quem sou? O que é isso que estou sentindo e não consigo mais reprimir? O que esta acontecendo comigo? Tem algo errado. Deve ter algum jeito de impedir que esses sentimentos aumentem (tenho um grande amigo que se julgava tanto, que na adolescência dava socos no órgão sexual como forma de punição, relatos extremos não faltam). Sabemos que não existe forma sincera e feliz de reprimir esses sentimentos de surgirem, porque cada um é o que é, a essência é única e sufocar é calar a si próprio.

Angustia, dor física no peito, palpitação, desespero, depressão, pensamentos destrutivos, vontade de isolamento, desejo de sumir, desrespeito a si próprio, autoagressão, insônia, amargura, duvidas que dilaceram, sentimento de vazio, sentimento de culpa, autocrítica destrutiva, sentir-se perdido, sem chão, se obrigar a ser o que não é se calando, se torturando, fingindo, se sufocando.

Algum desses sentimentos já invadiu o peito de vocês? A transição não é fácil (embora sabemos que o pós transição também não é um mar de rosas), as vezes achamos que não teremos força para continuar, as pernas cedem, os olhos deságuam, o corpo desaba e você só quer que aquele turbilham acabe, chega até a pensar que seria melhor não ter se descoberto.
É uma sensação momentânea de alívio o fato de se sufocar ou não se assumir, viver sendo o que você não é, é tortura diária sobre sua essência e ninguém merece viver a mentira de um engano reconfortante.

Como se já não bastasse ter que enfrentar o espelho e se olhar por outro ângulo sem se julgar ou se diminuir, como se já não bastasse os questionamentos internos sobre quem você realmente é, como se já não bastasse a cruel dúvida de enfrentar toda a base de sua criação para tentar se encontrar, ainda temos que enfrentar “desgosto” e julgamento da sociedade hipócrita e moralista.

O mais difícil é enfrentar os pais, mostrar a eles que você não é um modelo pré-construído e tem energia vital exclusiva, que você não é uma sociedade massificada mas que respira seus próprios desejos e vontades, ensinar a todos que não existe essa porcaria de termo de “opção sexual”, ninguém opta, ninguém “vira” (como eu já disse em outro post, quem vira é tapioca), a pessoa é, seja o que for e se estamos falando de orientação sexual, é direito de cada ser humano ter a sua.

Se você ainda esta na transição ou já saiu e continua enfrentando conflitos internos e externos, não se desespere. Sim, é difícil, muitas vezes dói, mas existe luz no final do túnel e se aceitar é sempre a melhor iluminação para os olhos e para a alma. Chore se tiver que chorar, se sentir vontade de se isolar, desde que não seja uma autopunição, viaje, tire um tempo só pra você, converse com alguém, faça terapia. Um psicólogo nessas horas é muitas vezes fundamental, mas NÃO se julgue, não se permita sentir culpa pelos outros.

É difícil em alguns momentos ignorar sentimentos tão fortes e tão julgadores, mas não torne a sua tão sagrada descoberta ainda mais complicada assumindo responsabilidades em não magoar ou decepcionar os outros, ainda que esses “outros” sejam mãe, pai e filhos. Não estou falando da boca pra fora, sei que o apoio dos pais é fundamental, ter uma família que te aceita e esta do seu lado faz toda a diferença.

Muitos pais não fazem idéia de como o papel deles é fundamental para ajudar quem está se descobrindo, e muitas vezes esse apoio não existe. Por isso, sei que não é fácil desprezar sentimentos de culpa, a vida é uma luta diária e se libertar das amarras educacionais, moralistas e religiosas é uma tarefa árdua. Enfrentar julgamentos, rótulos e ofensas externas causam feridas, mas se torturar, se rotular e se julgar é ainda pior.

Sim, dói o peito, queima a pela, falta o ar, mas quando você consegue respirar vai perceber que o ar que entrará pelos seus pulmões é mais limpo e muito, infinitamente muito mais leve. Ser heterossexual, bissexual, homossexual, transexual é normal, é lindo, é limpo, é livre, é real, é um direito.

Tenha orgulho de ser quem é! Você não é um produto pré-fabricado, você sente, ama e deseja de um jeito íntimo e bem pessoal. Seja feliz! O seu reflexo no espelho é digno de ser visto!

* Patty Gra é formada em Direito e Artes Cênicas, típica nativa de escorpião com ascendente em touro. Ciumenta e impulsiva. Adora praticar esportes, é amante de escalada esportiva, rafting, canoning, rapel e aficcionada por mergulho.

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