Na coluna de hoje, o tema é Jorge Lafond. Ator, bailarino, transformista, foi uma das figuras mais emblemáticas do universo LGBT brasileiro, para o bem ou para o mal – assim como Clodovil, tema da primeira edição desta coluna, Lafond foi amado e festejado por uns e repudiado por outros.
Nascido no Rio de Janeiro no bairro da Penha, em 1953, Jorge Luiz Souza Lima ainda criança já se enxergava como homossexual. Começou a trabalhar muito cedo em uma oficina mecânica e também em um parque de diversões.
Na adolescência, passou a estudar balé e dança afro, e formou-se em teatro pela UniRio. Na sequência, passou a fazer shows em inferninhos e cabarés cariocas, cobrindo toda a noite da cidade, de Copacabana a Irajá, passando pela Praça Mauá. Fez shows nas lendárias boates Flórida, Escandinávia, Barbarella e Kiss.
Ainda nos anos 70, Lafond viajou pela Europa, integrando um grupo de dança folclórica dirigido por Haroldo Costa. Na volta, já nos anos 80, foi parar na TV – primeiro no corpo de baile do "Fantástico", em 1982, e depois participando de humorísticos e musicais da emissora, como o "Viva o Gordo" e "Os Trapalhões". Apareceu também no cinema, fazendo pontas em filmes como "Rio Babilônia" (82) e "Bete Balanço" (84).
A essa altura, sua imagem andrógina e provocante já era conhecida na mídia, e em 1987 ele atuou na novela "Sassaricando", de Sílvio de Abreu, no papel de Bob Bacall – estrela de um cabaré underground onde os integrantes da organização secreta "Ela" se encontravam.
Bob Bacall já era um protótipo do personagem que consagraria Lafond de vez: Vera Verão. Interpretando essa criação no humorístico do SBT "A Praça é Nossa", o ator tornou-se conhecido no país inteiro. Ele encarnou Vera durante dez anos.
"Vera Verão" tornou-se gíria e sinônimo para gays afetados ou pintosas. Passou a ser usado como xingamento e práticas de bullying em escolas e ruas do Brasil, enquanto a imagem de Lafond ficava cada vez mais atrelada à personagem.
Militantes LGBT dos anos 90 passaram a desprezar Vera Verão, já que a personagem supostamente reforçava preconceitos e estereótipos sobre os gays. Em 2001, Lafond foi convidado pelo Ministério da Saúde para atuar em uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, gerando novas críticas, vindas do GGB – Grupo Gay da Bahia.
E o próprio Lafond acabava jogando mais lenha na fogueira, ao falar abertamente sobre sua homossexualidade, culminando com o lançamento, em 1999, de sua autobiografia – "Vera Verão: Bofes e Babados".
Na obra, o ator falava sobre seus romances e alardeava ter tido um caso com um famoso jogador de futebol. Depois de ameaçar revelar a identidade do tal jogador, Lafond mudou de ideia e acabou não dizendo quem era o atleta.
Também fazia questão de desfilar no Carnaval, no Rio e em São Paulo, e foi abusando cada vez mais dos modelitos – ou ausência deles, já que chegou a desfilar seminu algumas vezes. Sua atitude extravagante acabou atraindo a intolerância e hipocrisia de alguns. Ficou famoso o episódio envolvendo o Padre Marcelo Rossi, em novembro de 2002.
Lafond estava participando do programa "Domingo Legal", então apresentado por Gugu Liberato no SBT. Marcelo Rossi foi cantar e rezar no programa e, antes de entrar no palco, pediu que Lafond fosse retirado de lá.
A produção do programa – pasmem – obedeceu ao padre e Lafond foi para os bastidores. Diante do mal-estar geral, a produção voltou atrás e chamou Lafond de volta ao palco. Abalado, ele se recusou a voltar.
Naquela noite, Lafond foi fazer seu costumeiro show na boate paulistana Freedom, da qual foi um dos sócios. O ator se apresentou e brincou com o público, mas acabou desabafando e contando tudo aos presentes.
Depois do episódio, Lafond foi internado duas vezes por causa da pressão arterial – ele era hipertenso. O ator começou a sofrer complicações renais e caiu na depressão. Poucos meses depois, em 11 de janeiro de 2003, Lafond sofreu uma parada cardiorrespiratória e morreu em São Paulo.
O enterro do ator, no Rio, atraiu cerca de 5 mil pessoas, que aplaudiram Lafond e se despediram dele, provando que o carisma e a simpatia pública que ele criou eram maiores do que o preconceito e a intolerância das quais foi vítima, assim como, independente de rótulos, estereótipos e gramáticas, continua acontecendo com milhares de "Beeshas do Brasil".