Eu sempre soube que Berlim foi uma cidade muito aberta para os gays na década de 1920, com uma vida noturna das mais famosas em toda a Europa. Mas recentemente tive acesso a uma série de dados que me deixaram impressionada.
Desde 1750, quando o kaiser Frederico o Grande proibiu que sua guarda de elite tivesse homens casados e aceitou os muitos relacionamentos gays que ela abrigava, a homossexualidade foi tolerada na capital alemã. Durante todo o século 19 e começo do 20, foi a cidade preferida de gays, bissexuais e transgêneros, conforme escritores como Oscar Wilde e Christopher Isherwood relatam.
Imagine que, nos anos 1920, década considerada “dourada” pela boemia, a cidade tinha nada menos do que seiscentos clubes noturnos gls, dos quais 85 eram específicos para lésbicas! Não conheço metrópole que tenha sequer perto disso hoje em dia. Cerca de cem mil homossexuais viviam em Berlim e havia nada menos do que 25 mil garotos de programa em atividade na capital.
Nos clubes era comum que homens dançassem com homens, mulheres com mulheres, várias delas travestidas com fraques e fumando charutos, muitos deles engalonados em vestidos cintilantes. Havia de tudo na noite, dos buracos mais sórdidos, onde se pagava para fazer sexo nos fundos, até cabarés chiquérrimos, freqüentados pela mais alta aristocracia, com shows e apresentações diárias.
Um pouco como hoje em alguns círculos, era sinal de elegância conviver com gays e lésbicas e convidá-los às muitas recepções e coquetéis que aconteciam todas as noites nas mansões dos poderosos. Era comum que mulheres se beijassem em público e homens passeassem juntos em alta velocidade a bordo de carros esportivos sem capota, então o ápice da exibição de alta classe. Apesar de haver uma lei proibindo atividades homossexuais, a polícia tolerava toda a fauna e flora existente em Berlim, fazendo dela um oásis de tolerância na Europa.
Chocantemente, tudo isso mudou de repente com a ascensão do nazismo. Como todos sabemos, o novo governo estabeleceu, a partir de 1936, uma perseguição sistemática de todos os que desviavam do modelo de “pureza ariana”. O infame Parágrafo 175, que proibia a homossexualidade na lei alemã, foi usado como arma para prender, torturar e justificar o envio para os campos de concentração de mais de cem mil gays e lésbicas, que eram classificados com o triângulo rosa no uniforme.
Depois da guerra, a cidade nunca mais foi a mesma, perdendo o brilho de centro cultural e artístico que a caracterizava. O clima de intolerância fez com que os escritores e artistas que podiam emigrassem para paragens mais simpáticas, muitos tendo ido parar em Hollywood e iniciado a indústria do cinema.
É de fazer pensar a constatação de que uns poucos anos de fascismo, perseguição e violência deram fim a uma cultura de tolerância para com a diversidade sexual que persistia havia mais de um século. De repente, gays e lésbicas não só não tinham mais onde se encontrar como precisavam se esconder para não serem assassinados.
Não gosto muito de pensar na violência que gays e lésbicas já sofreram, acho muito negativo focar na violência e na discriminação, mas fui levada a refletir nesse dramático exemplo histórico. Penso assim que a insistência do atual movimento LGBT de visibilidade e garantia dos direitos das minorias sexuais em preto-no-branco, na lei federal, é uma precaução muito saudável e necessária.
A visibilidade e o reconhecimento pela sociedade de que somos cidadãos com direitos iguais é muito diferente da mera tolerância pela nossa existência, como os nazistas tão bem demonstraram. Convido a leitora a ler mais sobre o fantástico oásis gls que Berlim representou e ponderar o quão perigosa pode ser a atitude complacente de gays e lésbicas que não vêem necessidade de brigar por direitos, de votar em candidatos homossexuais e transgêneros nas eleições, que dizem ser aceitos sem precisar mostrar quem são e estar satisfeitos com seus bares e boates e namoradas/os.
* Laura Bacellar foi a editora responsável pelas Edições GLS e é autora de alguns contos e artigos tendo as lésbicas como tema.