Meninas, mais um conto para vocês. Não é continuação da Laís, mas espero postar esse em breve. Beijo e boa semana!
O caso é o seguinte: eu nunca quis te magoar. Mas acontece que a vida às vezes toma uns rumos estranhos, engana a gente. Você sabe como é, até porque nenhuma das duas tem nada de santa. No dia que eu fui embora, você estava dormindo e eu não tive coragem de te acordar. Não cabem mais mentiras, não tive coragem de te acordar por covardia mesmo e não por receio de te roubar dos seus sonhos.
Já estávamos nos enganando há um bom tempo, mas hoje sei que isso não justifica eu ter saído daquela maneira, sem explicar, sem conversar e sem discutir pela milésima vez. Confesso que não agüentava mais seus gritos, suas crises de ciúmes, seus choros e lamentos. Agora aqui estou eu, trancada num quarto de hotel, de uma cidade qualquer de um país qualquer da Europa, com saudades de uma daquelas crises de ciúmes sem fundamento, seguidas de bombons com pedidos de desculpas.
No dia que eu fui embora, você não acordou, não teve bom dia, não teve café e nem teve sua preguiça de colocar a pasta de dente na escova. Eu saí do apartamento com a viagem já marcada, queria evitar qualquer possibilidade de um encontro, de uma segunda – ou seria qüinquagésima? – chance. Quando fechei a porta o ar estava leve. Respirei. Dei o primeiro passo. O segundo foi mais fácil, mas tão doloroso quanto os seguintes que me trouxeram até aqui.
Naquela manhã, que já era quase tarde, a rua estava cheia, o que facilitou minha caminhada sem lágrimas. Caminhei até o metrô, desisti de entrar na estação, o ar livre sempre me fez bem. Desliguei o celular, não queria ver seu nome no visor, nem suas palavras escritas. Meu estômago estava revirando, mesmo de jejum parecia que eu tinha comido a refeição mais indigesta da minha vida.
Me aproximava da minha casa, que por muito tempo já não era mais minha, toda a confusão de roupas, escovas, chaves, tudo na sua casa, que era minha também. O seu quarto, nosso quarto, sufocava. Por inúmeras vezes acordei no meio da madrugada com a nítida sensação de falta de ar, agonia. Olhava para o seu rosto dormindo e sentia um misto de desespero e alívio. Não sei explicar, não quero explicar. Você merece uma explicação. Acho que aquele sábado durou 57 horas. Hoje faz quase dois meses e parece que o sábado ainda não terminou.
Minha caminhada durou quase uma hora. Cheguei em casa exausta, pesada. Deitei naquele quarto familiarmente estranho e dormi como há muito tempo não fazia. Estava tudo jogado, parecia que eu tinha ido embora fugida dali. Na geladeira um ketchup, meia melancia, água e três ovos. O resto de roupa que ainda tinha naquele armário estava todo revirado, dois pares de tênis, muita poeira. Nunca me fez falta, consegui me virar com aquela meia dúzia de roupa que tinha ficado no meu apartamento, não queria pegar aquelas roupas tão minhas, tão suas, cheias de histórias. Acho que por isso nunca gostei de roupa de brechós, não gosto de vestir uma história que não conheço. Não queria mais vestir nossa história.
Minha passagem estava marcada para segunda, dava tempo de visitar minha mãe, tias e primos. Passei o domingo em família, ouvindo seu nome toda hora que a porta se abria com mais uma convidada da sua sogra (dizem que sogra nunca vira ex, certo? Ou foi uma tentativa ridícula de ter nossa relação de volta por alguns segundos?). Beirou a tortura, acredite. Não conseguia comer nada, não conseguia explicar nada pra ninguém. Minha mãe já sabia da minha passagem marcada, da Europa e todo o mar de distância que isso envolvia.
Ela não entendeu, eu não consegui explicar, não queria explicar. Ainda tinha que arrumar as malas, passar no shopping pra comprar umas roupas, ir à farmácia sem a meticulosa lista que você fazia todo mês, conversar com o porteiro e zelador sobre minha ausência. Quase nada estava resolvido, quase nada.
Voltei pra casa de metrô, estava vazio, normal para um domingo quase nove da noite. Quis chorar, quis vomitar, quis voltar. Cheguei em casa, joguei as sacolas, não queria arrumar aquilo tudo, acho que nunca quis. Você me conhece, queria dormir e acordar com tudo resolvido, covarde, eu sei. Quis abrir uma garrafa de vinho, hesitei, o álcool nem sempre ajuda. Fui ver TV e tentar me distrair, era muita coisa ao mesmo tempo. Fantástico, um filme ruim, programa evangélico, mixtv, uma moça de unhas grandes vendendo jóias. Desisti da TV. Fui dormir, ou pelo menos tentar.
Estranhamente eu deitava naquela cama e caia em sono profundo, no início sempre ficava com medo de não pregar os olhos, me surpreendi. Sete e trinta e três (sempre tive uns horários estranhos para o alarme, acho que funciona melhor). Pulei da cama, meu vôo era ao meio dia, internacional, tinha que estar lá duas horas antes, um inferno. Celular ainda desligado, tive medo de ligar. Cheguei no horário, muita correria, achei melhor assim, sabe? Sem nem sentir? Sentei na poltrona dezessete, respirei fundo. A essa altura você já devia ter lido e relido o recado que deixei na sua geladeira, amassado, desamassado, lido de novo e queimado. Até hoje me pergunto que tipo de pessoa sou eu que termina com a outra através de um recado de geladeira. Sem respostas.
Eu imagino que passado todo esse tempo, você ainda deve me odiar. Mas te conhecendo bem, acho que aceitaria uma conversa para esclarecer o que aconteceu, sua curiosidade e vontade de resolver as coisas sempre foram maior que a raiva. Calma, não estou propondo um encontro. Na verdade o propósito desse e-mail segue tão duvidoso quanto como começou. Acho que precisava escrever pra você, me comunicar com você de alguma forma, ainda que solitariamente.
Quando desembarquei em Lisboa fiquei encantada. Me apaixonei pela cidade no primeiro minuto, precisava me apaixonar. Peguei as malas, um táxi, aquele português engraçado e fui para o hotel. Minha reserva era de quinze dias, depois eu tinha me programado para ficar em albergues ou em algum alojamento da universidade. Ah, já tinha me programado de fazer um curso de verão por lá. Me dá até vergonha não ter te contado tudo isso, mas enfim. O hotel era estranho, a rua maravilhosa. Acho que de outro jeito minha decisão não teria sobrevivido.
Eu teria voltado no apartamento setenta e um, voltado para cama com uma xícara de café e fingido que nenhum passo daquela fuga tinha acontecido. Era uma fuga, você sabe. Agora estou aqui, nesse quarto de hotel. Acho que estou feliz, a verdade é que nem penso muito sobre isso. Por favor, não veja como descaso. Na verdade, entenderei se ver dessa forma. Um recado na geladeira. Foi isso que consegui, covarde, eu sei.