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Calabar – Breviário

Há boas razões para se ver Calabar – Breviário na Unidade Provisória do Sesc na Avenida Paulista, em São Paulo. A qualidade do texto e das músicas, criados há 35 anos por Chico Buarque e Ruy Guerra, sobrevive a qualquer prova dos tempos. Da mesma forma, os temas da traição e da resistência são nossos contemporâneos, nesses tempos pós-mensalão, de cartões corporativos e aceleração do desmatamento da Amazônia. Quem se alinha com quem? Quem se deita com quem na cama política? Quem será a próxima Mônica Veloso? Quem é a Bárbara de hoje? Se Domingo Fernandes foi protagonista de uma tragédia, Roberto Jefferson o foi de uma farsa.

Tratando especificamente desta montagem, com direção de Heron Coelho, há méritos que a fazem um espetáculo único, com momentos que ficam gravados na mente do público durante muito tempo. Para relembrar, Calabar conta a história de Domingos Fernandes Calabar, um mameluco pernambucano que foi responsável, direta ou indiretamente, por todas as vitórias dos holandeses sobre os defensores do território brasileiro no século XVIII. Seu nome é associado à traição, por outrora ter sido ele um aliado da Coroa Portuguesa. As causas históricas da mudança de lado de Calabar são desconhecidas. Na peça, Bárbara, amante de Calabar, conduz a história e, ela mesma, vê-se dividida entre a lealdade e a traição, ao usar todas as armas possíveis para libertar o amado, preso em uma batalha e enforcado e esquartejado como troféu e exemplo. Bárbara é assediada por Ana de Amsterdã, em alguns dos textos mais lindos de erotismo lésbico do teatro brasileiro.

Segundo o diretor, para os portugueses, Calabar é considerado um desertor, um traidor de sua pátria. Mas para os holandeses, ele foi um grande herói, um mártir”. A intenção dessa montagem foi abordar esse caráter contraditório do conceito de traição. “A traição tornou-se um conceito, e o traidor um rótulo, ambos relativizados pelo olhar de quem está ou não com poder dessa decisão”, afirma o diretor.

Rafael Gomes, cineasta do curta Tapa na Pantera, divide o roteiro com Heron. Calabar – Breviário é uma continuidade do trabalho de pesquisa iniciado com a montagem de Gota gota d’agua – Breviário, que tinha Georgette Fadel, vencedora do prêmio Shell de melhor atriz pela atuação, como protagonista, em 2005. Na trilha sonora estão presentes músicas que faziam parte do roteiro original, como “Tatuagem” e “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, além de outras canções compostas por Ruy Guerra, como “Esse Mundo É Meu” e “Corpo e Alma”. Logo na entrada, assim que as portas do elevador do Sesc se abrem, o público é recebido com música e festa, o que o obriga a entrar no clima.

Os pontos altos de Calabar – Breviário são protagonizados por Luciana Paes, atriz de forte presença no palco, dona de uma voz linda e peculiar, que canta muito bem. Também está presente no palco a psicanalista Walkyria Brito, que interpreta a “idéia holandesa”, e é uma das convidadas especiais da peça. “Ela é uma atriz nata. Pessoas como Myriam Muniz e Naum Alves de Sousa quiseram levá-la para os palcos há anos e não conseguiram. Fiquei muito contente por ela ter aceito esse convite. Ainda mais em um texto tão político, que tem tanto a ver com a história de vida dela – Walkyria foi perseguida na época da ditadura, chegou a ser presa, foi um dos “Calabares” daquela circunstância”, explica Heron.

No geral, Calabar – Breviário é um trabalho que merece ser visto. Porém, problemas graves, mas pontais, incomodam o público mais exigente. Hoje em dia, é de grande mal gosto, por exemplo, associar a traição a Wilson Simonal, conforme ocorre em determinado momento do espetáculo. O cantor foi, durante muitos anos, considerado dedo-duro dos revolucionários contrários último regime militar instalado no Brasil. Sabe-se agora que sua história precisa ser revista, uma vez que a fama de Simonal como traidor foi criada pelos próprios militares. Também é desagradável associar homossexualidade a pedofilia, como na cena em que um padre é xingado com essas duas palavras.

Mais triste, porém, é a frustração da cena em que Ana declara seu amor a Bárbara. Durante o espetáculo, o público que se encantou com Luciana cantando Tatuagem, espera vê-la interpretar a canção que leva o nome de seu personagem. No original, ocorria no jogral dos famosos versos “o meu destino é caminhar assim, desesperada e nua, sabendo que no fim da noite serei tua”. A música está lá, mas tocada por um vitrola. Triste ver que se perdeu a oportunidade de mostrar o amor desesperado de Ana de Amsterdã por uma mulher forte e bárbara.

Serviço
Calabar – Breviário
Unidade Provisória do Sesc Avenida Paulista – Avenida Paulista, 119 – Fone: (11) 3179-3700. Sex. a dom.: 21h. Ingressos: R$ 5 a R$ 20.

* Ferdinando Martins é jornalista e crítico teatral

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