Nos últimos anos, desde que o Brasil passou a ocupar mais espaço no cenário internacional, para o que grandes eventos como a Copa e as Olimpíadas contribuíram muito, tem crescido o número de estrangeiros que nos visitam e, às vezes, até mesmo decidem aqui se estabelecer. O fator determinante para isso, nos recentes anos de crescimento, podia ser financeiro, isto é, a busca por oportunidades profissionais, mas eventualmente, em paralelo, formam-se também os laços afetivos. Quem não conhece um casal de namorados formado por um gringo e um brasileiro?
Esses casais têm motivos de sobra para se estabelecer no Brasil, que hoje pode ser tão ou mais atrativo que retornar para a Europa: o ambiente é receptivo para todas as pessoas e a xenofobia não é tão ameaçadora quanto lá; as oportunidades profissionais têm pipocado por todos os lados, apesar de uma infraestrutura de serviços públicos nem sempre tão eficiente; e direitos para LGBT são minimamente garantidos, como com o casamento e algumas leis estaduais anti-homotransfobia.
Para o casal que decide ficar por aqui e desenvolver sua vida em comum, alguns obstáculos burocráticos podem surgir, dentre os quais a obtenção de visto de permanência. Em geral, o visto é concedido para quem motivos para aqui se estabelecer: trabalho e estudos garantidos costumam ser a exigência. Mas há também a possibilidade de solicitar visto de permanência quando se formou ou se deseja formar uma família por aqui.
Na própria página da Polícia Federal na internet consta uma lista de documentos necessários para fazer a solicitação. Basicamente, ou se comprova a união estável por meio de escritura assinada no país de origem (por exemplo, um brasileiro e um italiano registram a união em Roma e trazem o comprovante pra cá), ou por meio de documento emitido pelo Judiciário brasileiro.
Quem não tem acesso a esses recursos, deve apresentar (1) uma escritura de união estável (daquelas que se assina em cartório); (2) declarações de duas testemunhas; e, pelo menos, (3) um dos seguintes documentos, com mínimo de um ano de registro:
(3.1) Constar como dependente no Imposto de Renda; (3.2) Certidão de casamento religioso; (3.3) Constar no testamento do companheiro; (3.4) Constar como beneficiário do seguro de vida do companheiro; (3.5) Ter conta conjunta no banco; e outras formas menos comuns.
Esses requisitos, no entanto, acabam sendo muito difíceis de ser preenchidos, afinal poucos gays e lésbicas se casam no religioso (digo pelo meu círculo de amizades, pelo menos); no Brasil, não existe o hábito de se registrar testamento ou seguro de vida; e abrir conta em conjunto no banco sem CPF e RNE (Registro Nacional de Estrangeiro) é impossível.
Por isso, muitas vezes a alternativa de recorrer ao temido Judiciário acaba se tornando mais atraente do que reunir algum desses documentos do item 3. O advogado contratado pelo casal pode ingressar no Judiciário pleiteando o reconhecimento da união estável, o que tende a ser um procedimento relativamente simples, já que não existe parte contrária.
Para que o processo judicial seja o menos arriscado possível para os interessados, é claro que o ideal é reunir o máximo de provas possível da união entre o casal: fotos, declarações de testemunhas e mesmo dos autores da ação são essenciais para passar transparência e evitar a imagem de uma "união de conveniência" (fraude frequente em países desenvolvidos, como Estados Unidos).
Eventualmente, o juiz deve agendar alguma audiência e, com isso, o casal e as testemunhas podem ser ouvidos sobre o pedido. Ao final, sairá uma sentença que afirmará ou não a existência da união estável, documento necessário para a obtenção do visto de permanência, mas que também pode vir a ser útil ao casal em outras ocasiões, especialmente naquelas relacionadas ao aspecto civil do estabelecimento da vida em comum.
Este tipo de caso não é novidade para o Judiciário. O próprio Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, já se manifestou sobre o tema, por meio do Recurso Especial 1.370.542-DF, em que disse afirmou que "A pretensão de ver reconhecida a união estável homoafetiva como uma sociedade de natureza familiar vai além de eventual intenção de se fazer prova voltada à concessão de visto definitivo de permanência do recorrente estrangeiro no Brasil".
A relatora, ministra Nancy Andrighi, que já se posicionou diversas vezes a favor dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, aproveitou a oportunidade para deixar o recado: "à união homoafetiva é dispensado o mesmo tratamento conferido à união de heterossexuais, de sorte que, para ambos, devem estar disponíveis os mesmos instrumentos processuais destinados ao reconhecimento da entidade familiar".
Assim, se casais heterossexuais têm o direito de recorrer ao Judiciário para comprovar sua união estável e, consequentemente, obter visto de permanência, não há motivos para que casais formados por gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais também não possam reivindicar e usufruir desse direito.
Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também fundou e atualmente coordena o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP, que oferece assistência jurídica gratuita para travestis e transexuais de baixa renda na cidade de São Paulo; trabalha no Centro de Cidadania LGBT Arouche da Prefeitura de São Paulo; e escreve quinzenalmente sobre Direitos no portal A Capa. www.thalescoimbra.com.br