As primeiras cenas de "Estamos Juntos", novo longa-metragem de Toni Venturi ("Cabra Cega"), que estreou na última sexta-feira (3) em circuito nacional, denunciam as mazelas da maior cidade do país – as lindas panorâmicas, impulsionadas pela densa e poética trilha sonora, revelam uma metrópole cheia de contrastes e servem como força motriz para o roteiro de Hilton Lacerda ("Amarelo Manga" e "Cartola").
No filme, Leandra Leal é Carmen, uma médica residente que saiu do interior do Rio de Janeiro e se mudou para São Paulo em busca de independência. Carmen é amiga de Murilo, um DJ gay interpretado por Cauã Reymond. No hospital, a médica divide os poucos momentos de tranquilidade com a enfermeira vivida por Débora Duboc. Longe do ambiente hostil de seu trabalho, Carmen se envolve com o músico argentino Juan (Nazareno Casero, em atuação apática).
Talvez como uma projeção de seu subconsciente, a médica se relaciona com um misterioso homem, papel do ator Lee Taylor, que surge em momentos chave do filme. A dúvida sobre a existência desse homem paira durante toda a trama, mas o que importa não é saber se ele é real ou não e, sim, entender de que forma ele polariza determinadas ações da protagonista.
As ocupações irregulares de prédios no centro da capital servem como pano de fundo para contar as histórias de marginalização dos integrantes do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). A convite da amiga enfermeira, Carmen aceita o desafio de ministrar oficinas sobre saúde e sexualidade para os moradores carentes. O trabalho voluntário é interrompido quando a médica recebe o diagnóstico de um câncer no cérebro.
A doença obriga Carmen a parar de trabalhar – e transforma radicalmente suas relações. Como se não bastasse, Murilo se afasta da médica quando descobre que ela estava saindo com Juan, por quem o DJ nutre um amor platônico. É a partir desse ponto que "Estamos Juntos" mergulha na natureza conflituosa de seus personagens: de um lado, Murilo se engana acreditando que Juan poderia um dia se envolver com ele; do outro, Carmen se força para voltar à rotina diária, mesmo sabendo que seu risco de morte é iminente.
"Estamos Juntos" é um filme sensível, delicado e otimista, basta assisti-lo para entender por quê. O próprio Toni Venturi se envolveu no dia-a-dia do MSTC, captando imagens dos conflitos entre os militantes e a polícia. O longa transborda poesia através das imagens panorâmicas de uma cidade que bem poderia ser qualquer outra do mundo. Os personagens são tipos corriqueiros, comuns, com problemas parecidos com os nossos. Além da belíssima fotografia, as atuações são o ponto forte do filme, em especial a de Cauã Reymond. O ator parece querer se desvencilhar do estigma de galã ao assumir papéis cada vez mais complexos. Para interpretar Murilo, Reymond escolheu um registro simples, que foge do estereótipo do gay afetado. Convincente, a atuação surpreende pela naturalidade e entrega, e coloca em segundo plano o detalhe sobre a orientação sexual do personagem.
Outro destaque é a trilha sonora. A música "Lero Lero", de Luísa Maita, ganhou uma versão produzida por BiD (Chico Science & Nação Zumbi, Pavilhão 9, Planet Hemp e Funk Como Le Gusta). A própria cantora participa do longa interpretando a canção, em uma cena filmada no Clube Berlin. Elza Soares também integra a trilha com uma linda interpretação de "Paciência", de Lenine.
"Estamos Juntos" foi o grande vencedor do 15º Cine PE, realizado no mês passado em Recife. Além de melhor filme, ganhou os troféus de direção, atriz (Leandra Leal), roteiro, fotografia, montagem e prêmio da crítica.
Assista abaixo a um vídeo onde Cauã Reymond fala de seu personagem em "Estamos Juntos":