Você, caro leitor, provavelmente já viu uma história muito parecida com essa acontecer ou ser contada por seu vizinho, primo ou colega de trabalho, ou até mesmo, a situação pode lhe ter acometido: garoto revela homossexualidade para os pais e irmãos e sofre o preconceito e à pressão da família, principalmente pelo fato dos integrantes da mesma seguirem fielmente a cartilha da Igreja e dos ensinamentos de uma "distorcida Bíblia Sagrada": o filme da vez é Orações para Bobby, lançado na televisão nos Estados Unidos um dia antes da cerimônia do Oscar 2009. Emocionante, o filme cativa o espectador ao trabalhar bem os personagens principais e coadjuvantes. Controverso, ao estereotipar o universo homossexual em poucas, mas significantes passagens.
O filme é baseado no livro homônimo de Leroy F Aarons, produzido para a televisão. Russel Mulcahy dirige esta trama sobre Mary (Sigourney Weaver, ótima), uma cristã devota, que segue todos os ditames da Igreja que frequenta e dos ensinamentos bíblicos. Um dia, precisa enfrentar os fatos: um dos seus filhos é homossexual, o delicado Bobby (Ryan Kelley). A partir daí, Mary inicia uma cruzada incessante buscando a cura do filho, passeando por intensos ritos religiosos e terapias.
Após um tempo tentando aceitar a situação e sobreviver à pressão sofrida, Bobby tem uma crise de desespero e decide tirar a sua vida, se jogando de uma ponte. Mary, chocada com a notícia, entra em estado de choque e começa a repensar as atitudes, buscando numa outra igreja próxima as respostas que precisava para lidar com a situação, principalmente depois de encontrar o diário do filho e, ao ler, perceber que se tratava de uma ainda imatura vida sofrida e cheia de indecisões e medos.
Bobby não só enfrentava o preconceito da sua mãe. A sua avó, logo no início da trama, durante uma festa de aniversário, exaspera ao ver um dos netos, o irmão de Bobby, brincando e se travestindo, fazendo piada com um dos presentes dela. Taxativa, diz: “as bichas deveriam ser alinhadas e fuziladas!” Bobby é parte de uma família fortemente influenciada pelos ditames das interpretações controversas que os frequentadores de igrejas fazem do texto escrito e interpretado por homens: a Bíblia. Até na mesa de jantar eles debatem conceitos e regras do livro sagrado.
O filme retrata também as tentativas de Bobby em se enquadrar: no carro dos pais, durante um tórrido encontro (apenas pela parte dela) com a namoradinha da escola, foge da situação ao ser colocado na parede pela moça, que no momento, deseja transar com o garoto. Termina a relação e conta, no outro dia, para o irmão mais velho, que não excita em guardar segredo e revela tudo para a sua mãe, para que algo seja feito a tempo.
Todos os dramas que já vimos em outros filmes ou em nossas vidas: a tensão ao ver um beijo ou cena gay na televisão, próximo aos familiares e seus infames comentários; a ida ao terapeuta e a incessante busca de cura por parte de alguns pais; a tia ou madrinha que pede ao sobrinho que tire a mão da cintura, para não parecer uma mulher; o mergulho intenso do primeiro beijo apaixonado; a sensação de liberdade em dormir com outro cara; a prima liberal e descontraída, livre de preconceitos, que ajuda o personagem na carga pesada que Bobby encara no bojo do seu lar. Situações já conhecidas pelo público alvo, oferecidas em Orações para Bobby.
Outro ponto interessante do filme é a sensibilidade do personagem Bobby: enquanto a mãe assiste a um dos clássicos de Hitchcock, Bobby senta ao seu lado e começa a comentar o filme, detalhes específicos da linguagem do cinema e curiosidades. De todos os quatro filhos, Bobby é quem mais tem sensibilidade para manifestações artísticas. Estereótipo? Talvez. Mas pelo menos retratado de forma positiva.
Para os acostumados ao estilo da linguagem cinematográfica veiculada em grandes produções, Orações para Bobby pode incomodar pelo ritmo e edição típica de telenovelas. Mas, por outro lado, as atuações são tão marcantes quanto as que estamos acostumados a ver concorrer ao Oscar e BAFTA todos os anos.
O filme concorreu aos principais prêmios ligados ás produções televisivas: Globo de Ouro, SAG Awards e Emmy: se fosse direcionado aos cinemas, sem sombra de dúvidas iria concorrer ao Oscar de Melhor atriz, tamanha a grandeza da performance da excelente Sigourney Weaver. A personagem é cuidadosamente trabalhada: temos uma ideia do seu comportamento no trabalho e com suas colegas de profissão, na igreja e em casa.
Com uma direção segura, roteiro coeso, Orações para Bobby só incomoda um pouquinho ao vincular os guetos gays como “a queda no buraco” sofrida por Bobby, ao estilo Alice, do clássico de Lewis Carrol, cheio de figuras enigmáticas e reforço da aparente vida pregressa dos homossexuais. È numa boate que Bobby vai encontrar o seu primeiro amor. Seria proposital? Por que não prezar por outra faceta dos gays, num encontro fora do circuito das baladas e da curtição vazia, como num lançamento de um livro ou numa sessão cultural de música ou cinema? É apenas um detalhe que em meu ponto de vista, quebraria o lugar comum, principalmente das mães, público alvo do filme, receosas da dita vida “suja” de alguns homossexuais.
Outro problema é a confusa visão que Bobby tem do seu namorado David. Após discutir com a mãe, Bobby sai de casa aos prantos, magoado com a afirmativa “Não quero ter um filho gay, saia da minha casa!”, declamada pela mãe. Ao dirigir em direção da casa da prima, e consequentemente, encontrar o seu namorado, passa diante de uma boate gay e o encontra aos beijos com outro rapaz. Dali, segue até uma ponte e comete suicídio. Percebemos que não somente pelas palavras da mãe, mas encontrar seu namorado o traindo também somou para o ato de se matar. Daí, a pergunta: por que veicular o estereótipo da traição aos homossexuais? Sabemos que se trata de outro mito corrente no cotidiano das pessoas. Gays não se apegam a nada e traem seus namorados com maior facilidade. Eis a questão: deixo-a, por sinal, aberta para os leitores traçarem seus comentários.
Mais adiante, Mary procura a melhor maneira de se redimir. Começa a frequentar reuniões de pais de homossexuais de uma igreja próxima a sua casa e por fim, torna-se uma espécie de ativista dos direitos gays. Vale ressaltar que isso não acontece da noite para o dia. Graças à elipse, somos levados adiante na narrativa e seis meses depois, Mary ainda guarda alguns preconceitos consigo, que são quebrados ao longo do filme. A conscientização não é artificial e o filme trabalha muito bem a situação. Com parcimônia, Mary e os familiares trabalham a ideia de que a Bíblia não prega o ódio aos homossexuais. Numa cena interessante, Mary procura o pastor para elucidar algumas dúvidas: ele informa, por exemplo, que a palavra abominável naquele período se referia a anti-higiênico e que a passagem do Levítico, terceiro livro da Bíblia, que diz ser abominável um homem que deita com outro carece de interpretação, assim como outras passagens da Bíblia que são citadas no diálogo.
Orações para Bobby foi lançado pelo canal Lifetime, considerado o canal das donas-de-casa. Logo depois, se tornou um daqueles fenômenos da internet, veiculado pelo megaupload e torrente, legendado nas mais diversas línguas e compartilhado em blogs e sites de downloads, direcionados, principalmente, ao público homossexual. O lançamento do filme em DVD não foi mencionado ainda no Brasil, assim como a publicação em português do livro homônimo que originou o filme. Não deixe de ver Orações para Bobby: é um filme cheio de pontos positivos e com excelente discussão acerca da cultura gay.
"Orações para Bobby" – nota 8 – disponível no Portal Gay Load; não em DVD
*Leonardo Campos escreve quinzenalmente neste espaço sobre cinema e lançamentos em DVD. É pesquisador em cinema, literatura e cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor de literatura.