Em matéria publicada pela revista DOM deste mês, a militante e diva paulistana Claudia Wonder desbravou o mundo do gênero trans. Na reportagem, ela explica as diferentes e as diferenças entre identidades de gênero de travestis, transexuais e transgêneros.
Claudia, de maneira sensível, conta histórias de representantes da sigla TTT, do GLBTTT. Ela também faz um perfil de si na matéria. "Passei minha vida inteira acreditando que era travesti, mas, há quatro anos, uma de minhas tias resolveu contar alguns ‘segredos de família’ e eu descobri que nasci intersexo", revela a ativista nas páginas da revista.
"Fiquei curiosa, fui pesquisar e descobri que também possuía órgãos femininos internos", conta Claudia. Em entrevista por e-mail concedida ao A Capa, ela dá mais detalhes sobre a descoberta da intersexualidade e faz um alerta. "O que me preocupa é que a medicina esconde isso das pessoas e se por acaso essa pessoa tiver um problema em algum órgão "ignorado" do seu corpo não vai poder tratar."
Como você define ou explicaria para um leigo o que é a intersexualidade?
A medicina trata a questão dos intersexos e hermafroditas como uma anomalia, um erro da natureza que pode ser "concertado" através de operações e tratamento hormonais. Eu passei por isso na minha infância, assim como muitas outras crianças. O tema é complicado e extenso. Portanto, para quem se interessar pelo assunto, eu indico o meu blog www.flordoasfalto.blog.uol.com.br onde você vai encontrar vários artigos sobre o tema. Depois que descobri que nasci intersexo, me dediquei a estudar a androginia, hermafroditas e intersexos. Garanto a vocês que fiquei pasma com o tabu que envolve esse assunto. A questão intersexo abala os alicerces de todo conceito religioso e social de nossa cultura. Ainda hoje em vários lugares matam crianças que nascem intersexos. Aqui no ocidente, os médicos decidem o destino sexual dessa criança na ponta de um bisturi. Eu escapei por pouco. Na internet existem centenas de artigos a esse respeito. Eu mesma já escrevi pelo menos uns três ou quatro. Para mim, é uma forma de exorcizar a invisibilidade e crueldade que encerra essa questão.
Como foi a conversa com sua tia que você cita na reportagem da DOM?
A conversa aconteceu durante um almoço no dia das mães quando fui visitar o túmulo de minha mãezinha em Jundiaí. Em 2004, eu e meu primo fomos a casa dessa tia almoçar e, de repente, ela começou a contar várias coisas sobre o passado da minha mãe, meu pai e outros membros da família que já faleceram. Parecia que ela estava desabafando segredos que só ela sabia e que a sufocavam, por isso ela precisava passar adiante. Um deles era esse: que eu tinha nascido com sexo ambíguo e que o médico queria me operar para que eu crescesse como menina. Mas meus pais preferiram esperar e deu certo. Durante os meses seguintes, meu sexo se desenvolveu normalmente como qualquer outro menino. Graças a Deus não me cortaram nada!!! Ao menos eu posso decidir se quero ou não mudar de sexo. Aos seis anos de idade retiraram meu ovário, mas meu útero continua no lugar como me foi confirmado em um exame de ultra-som.
Por quê decidiu fazer a revelação?
Eu contei isso na G Magazine em minha coluna logo que fiquei sabendo em 2004. Foi uma forma de exorcisar o nó que deu na minha cabeça na época. Aliás, tudo que me aflige ou encanta, vira texto. É uma forma que encontrei para transmutar minhas emoções. Senti necessidade de falar sobre um assunto que é invisível mesmo para o universo da diversidade sexual. Foi como se eu tivesse encontrado a resposta física e concreta sobre as questões sexuais. Se a natureza produz essa diversidade que é física, para mim ficou muito mais fácil entender as diversidades subjetivas como a homossexualidade e a trassexualidade. Para mim, a existencia dos intersexos e hermafroditas confirmou que a diversidade sexual é tão natural quanto ter olhos azuis ou castanhos.
O que sentiu ao descobrir que tinha órgãos femininos?
O que você sentiria? Então, foi assim que eu me senti.
Como os médicos reagiram quando da descoberta?
É o seguinte: eu não fui ao médico especialmente para saber disso, as coisas aconteceram espontaneamente, assim como o desabafo da minha tia. No ano de 1999, tive um problema na região abdominal e o médico pediu um exame de ultra-som, porque ele não sabia se era no baço, no pâncreas etc… Fui fazer o tal exame e lá pelas tantas o rapaz que estava fazendo o exame exclamou para a enfermeira que estava ajudando, "olha o útero dela aqui!" Eu achei engraçado e comecei a rir pensando que ele estava brincando comigo, mas percebi que a expressão deles não era de brincadeira. Isso passou e eu nunca mais pensei no assunto. No ano passado fiz alguns meses de terapia freudiana com a Teresa Rocha Leite Haudenschild, que estava a fim de fazer um estudo comigo. Um dia depois da análise, ela me perguntou se eu já tinha feito algum exame para saber se eu tinha útero. Aquilo me deixou boquiaberta e mais uma vez pensei que estava brincando comigo, mas não. Ela me disse que não conseguia me classificar como travesti, nem como transexual e que muitos intersexos possuíam útero. Então eu liguei uma coisa com a outra e cheguei a conclusão de que eu tenho útero. Nossa, cada vez que eu conto isso me sinto muito estranha.
O que achou de ter se descoberto intersexo? Acha que foi uma descoberta tardia? Acha que teria feito diferença na sua vida descobrir esse "segredo familiar" antes? Quais?
Como disse na matéria da DOM, me descobrir intersexo na prática nada mudou. Apenas fiquei feliz em saber que não somos apenas homens e mulheres no mundo. E assim como na diversidade vegetal e animal nós humanos também produzimos seres andróginos e hermafroditas. O que me preocupa é que a medicina esconde isso das pessoas e se por acaso essa pessoa tiver um problema em algum órgão "ignorado" do seu corpo não vai poder tratar. Entendeu a gravidade da coisa?
No trailer do filme "Meu amigo Claudia" você fala sobre ser homem e mulher ao mesmo tempo. Na reportagem, sobre androginia e sensação de ser dois. A intersexualidade vai estar no filme?
No filme eu falo de tudo e, com certeza, essa questão será abordada.