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Complexo de Dona Flor

“Dona Flor e seus dois maridos” em cartaz no Teatro Faap até julho, com ingressos que võo de R$60 a R$80 e elenco corajoso – com mais de 10 atores bem heterogêneos – para dar conta da adaptação teatral de uma das histórias mais famosas de Jorge Amado. É um achado e uma grata surpresa. Honesto, bem feito, engraçado e emotivo, na mesma proporção.

Flor (Carol Castro) fica viúva de Vadinho (Marcelo Faria) o típico malandro que não quer nada com nada, mas possui sex appeal e lábia, dosando malícia e certa levada de moleque brincalhão que faz a cabeça de todos. Amado pela mulher, ovacionado pelos amigos, desejado (sexualmente) secretamente pelas mulheres politicamente corretas da redondeza e odiado pelas mães de famílias, Vadinho é um prato cheio para despertar em qualquer pessoa – vale mulher, gays e enrustidos – um frisson sexual.

Quem não gostaria de viver intensamente o desejo carnal, temperado com um pouco de safadeza e sentimento sincero? “Vadiagem é coisa de Deus”, Vadinho afirma em dado momento da peça para tentar convencer a mulher a ceder aos seus apetites despudoradamente sexuais. O personagem defendido, muito bem por Marcelo Faria, seduz não só a musa, como toda a platéia. À vontade, nu, engraçado, sexy e romântico – desses romantismos de bar de esquina, tipo “amor vagabundo” – o personagem despertou na apresentação uma das mais saborosas reflexões sobre o que a mulher realmente deseja de um parceiro. E pergunto aqui, porque não de uma parceira?

Após um ano da morte de Vadinho, Flor, enlouquecida de desejos carnais acumulados, resolve casar com um farmacêutico, respeitador e sem o menor sex appeal. Se vê entre a cruz e a espada: o desejo de um homem ardente safado que a pegue de jeito e um homem politicamente correto, com bens materiais, educado e que causa inveja para os que a rodeiam.

Uma amiga, que assistiu à peça comigo, defendeu veemente que toda mulher vive o drama da personagem defendida com graça e sutileza por Carol Castro. Mas que por vezes casa com um tipo mediano, burocrático e devagar na cama, ou machista o suficiente a ponto de não explorar sexualmente e sabiamente – se é que posso usar esse termo – a parceira. Fiquei me perguntando, se entre os gays, a “lei” também se faz presente. Para os homossexuais masculinos certa malicia é ponto de ebulição necessário para fazer ferver a relação; entre as mulheres, imagino que vale a mesma regra, não? Afinal todos gostam de uma boa sacanagem feita com respeito, segurança e consentimento de ambos.

O texto de Amado é deliciosamente pornográfico. E o público ouve e não se constrange com assuntos como tesão, desejo carnal, poluções noturnas, necessidade do órgão masculino e por ai vai. O público ri. A adaptação de Faria e Pedro Vasconcelos oferece ao público uma refeição completa repleta de humor, sensibilidade, verossimilhança e romantismo, sobre um assunto sempre espinhoso e por vezes constrangedor.

Vasconcelos harmoniza seu elenco de forma a compor um mosaico de tipos baianos, feito com graça e eficiência. O ritmo é fluente, a necessidade de aproximação com o público é evidenciada nas várias intervenções no corredor do teatro, como que potencializando o carisma que o público nutre pelos personagens logo de cara. Tudo ao som deliciosamente suave de Dorival Caymmi.

A grandiosidade do texto de Jorge Amado foi trabalhar com um assunto comum a todos: a necessidade sexual do outro. De forma singela, direta e debochada é a voz do povo que está em cena. Não há psicologismos, redundâncias e/ou impostações. A encenação de Vasconcelos potencializou o texto do autor baiano e aproximou o público da população baiana, povo que tem um jeito bem peculiar de se expressar.

Deus, céu ou inferno, vida e morte, são questões confrontadas da forma mais cotidiana e popular possível. A retratação dos orixás em cena é uma das mais acertadas opções cênicas da montagem, talvez a melhor que já vi, além de remeter a cena ao Dique do Tororó, ponto turístico da cidade de Salvador onde existem estátuas no meio da água que representam cada um dos orixás.

Cada um sabe o quanto a necessidade de se sentir desejado(a), acariciado(a), respeitado(a), corrompido(a) e amado(a) sem pudor como Adão e Eva – e aqui o exemplo vale apenas porque é o primeiro casal da História – que amaram-se, se consumiram sem pudores e foram expurgados do paraíso.

Jorge Amado o poeta das ruas de Salvador, questionou. Cabe a você se reconhecer ou não. Vestir ou não as máscaras da hipocrisia. Dona Flor é entretenimento de qualidade. Cabe lembrar aqui do ótimo desempenho de Ana Paula Bouzas, como Dona Norma, a amiga de Dona Flor, aquela típica amiga que adoramos ter ao lado. Não perca.

* Rodolfo Lima é ator e jornalista.

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