in

Constituir-se como pessoa através do Outro

Na coluna deste mês gostaria de comentar o filme Eu matei minha mãe ( Jai tué ma mère). Na época do lançamento do filme, em 2009, até me interessei em assisti-lo, mas não lembro por que acabei não indo ver. Recentemente trombei com ele novamente, agora no serviço de streaming badalado do momento. Trata-se da relação de um adolescente com sua mãe, numa oscilação de amor e ódio, ternura e grosseria, cortesias e desfeitas, pedidos de amor e declarações de guerra.

Hubert, o protagonista, em seus 16 anos de idade se vê às voltas com algo que poderia passar por um brado de vontade de independência, mas a cada vez que tenta se afastar de sua mãe acaba por se aproximar mais, como se estivesse andando em círculos. E isto é muito mais comum na vida real do que se imagina!

Aproveitando o filme para trazer à baila como a psicanálise pensa a constituição de um ser humano, começo por desfazer uma ideia errônea: a de que a psicanálise trata das pessoas com a historinha batida do mito de Édipo: matar papai e casar com mamãe. Nada mais enganoso. Uma leitura mais atenta de Freud, explicitada por Lacan, nos mostra o quanto somos fundados pelo Outro, assim mesmo com maiúscula, pois o Outro é uma função e uma das formas de defini-la é como "o campo da linguagem". São as pessoas que fazem a função materna – costuma haver uma figura principal, mas nunca é única e tampouco é necessariamente a mãe biológica – que se fazem de suporte do Outro para o recém-nascido, dando a este seus primeiros banhos de linguagem, nomeando a criança e nomeando seus gestos, atitudes, vontades, etc. Linguagem que é diferente de voz, já que surdos têm uma constituição como quaisquer outras pessoas, pois também estão na linguagem. Ou seja, somos constitucionalmente fundados no e pelo Outro. É por isso que não é a toa que boa parte da obra freudiana precisa abordar a história pessoal não só do analisando, mas também de seus familiares e sua cultura.

 
 

Acontece que tornar-se autônomo, ou melhor: ter a fantasia de que se é autônomo, é necessário em alguma medida. Ficar nas mãos deste outro (que fez o suporte do Outro) eternamente não é nada desejável, tampouco prazeroso. É para ilustrar a operação desta cisão, dolorosa, mas necessária, que quero utilizar o filme, já que a adolescência pode ser um momento importante para esta cisão parcial com o outro. E precisamos ser lógicos aqui: só pode haver cisão se houver antes uma certa fusão ou indistinção. E só pode haver cisão com o que está lá posto, com o que existe. É por isto que aqueles que exercem a função de cuidadores de referência são tão comumente acusados de todo tipo de coisas por alguns adolescentes: para dizer que eu sou eu, preciso me contrapor ao outro! Difícil tarefa dos cuidadores de suportarem ser estes outros!

Acontece que nada disso é consciente: ninguém sabe conscientemente que está passando por isso, tampouco ter uma aula de psicanálise vai resolver as coisas. As formas desta cisão podem ser inúmeras e das mais sutis possíveis!

Porém aqueles que fizeram a função de suporte do Outro para a criança também operaram como modelos identificatórios. Difícil não rir nos momentos do filme em que são feitas acusações de que o outro (o pai, a mãe, etc) está fazendo algo que é justamente o que Hubert está pondo em atos no mesmo momento! O outro sou eu. Não, eu não sou o outro. Afinal, quem sou? Como sou? Quero que o outro me dê! Mas não, quero conseguir por mim mesmo! Não é por acaso que estes questionamentos que parecem tão bobos e de diários juvenis que se tem vergonha posteriormente são tão comuns em tantas pessoas.

Esta cisão com o outro obviamente nunca é completa e total. Demanda-se algo de quem está ocupando este lugar de Outro, localiza-se as faltas, as deficiências, os problemas nele. E o Sujeito fica, deste modo, escondido, abafado, numa dificuldade enorme de dizer de si por si e de desejar. E aí, sintomaticamente, as relações se tornam barris de pólvora!

Em tempos atuais de discussão sobre o que é família e sobre o que determina a orientação sexual de alguém, pensar sobre como nos tornamos adultos pode ser bem proveitoso. Identificação e oposição, alienação no Outro e dizer de si: processos não conscientes, não moldáveis, mas passíveis de ser elaborados e entendidos a cada análise pessoal e também pela construção de uma teoria metapsicológica que permita trabalhar estes processos.

+ Estratégias e reflexões para combater a homofobia – até mesmo a internalizada

Espero ter deixado claro o porquê de famílias dorianas não darem garantia alguma do que será de seus filhos. Tampouco as famigeradas "famílias desestruturadas" (termo execrável) também não serem determinantes. Constituir-se como ser humano significa entrar num mundo de possibilidades e se posicionar diante delas, fazer escolhas conscientes e inconscientes e principalmente: não ter garantias e tampouco pré-determinações.

Não é à toa que ocorre a situação no carro entre Hubert e seu namorado perto do fim do filme: é uma situação parecidíssima com a que ele vivia com sua mãe no começo, demandando dela atenção e repelindo-a ao mesmo tempo, embora com as posições aparentemente trocadas na cena com o namorado. Mas aí já fica claro: tem algo de Hubert ali, que é dele, e que vai se repetindo nas relações dele com os outros embora aparentasse ser de outra pessoa, a mãe no caso. O que é isto que se repete? Bom, isso já não é possível saber, ele é só um personagem de filme e não uma pessoa real. Mas qualquer semelhança com a realidade de muitos de nós não é mera coincidência.

 

Leandro Salebian é psicólogo (CRP 06/99001) graduado pelo Instituto de Psicologia da USP. Já trabalhou na área da saúde mental em um CAPS Adulto e hoje se dedica exclusivamente ao trabalho em consultório particular. Segue sua formação estudando autores da Psicanálise e tem um olhar crítico e atento às questões de gênero e diversidade sexual. Acesse também seu site (www.leandrosalebian.com.br )

Festival do Rio premiará melhor filme de temática LGBTQ e cria Prêmio Suzy Capó

Museu da Diversidade Sexual atinge marca de 150 mil visitantes