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Crônica de um último sorriso

Saiu de casa como fazia todos os dias. Mais uma vez olhou para o relógio e pensou: “Estou atrasado”. Atravessou a rua às pressas, quase desatento, cruzou o posto de gasolina em direção ao metrô. “Ainda preciso carregar meu bilhete único”, lembrou.

No vagão lotado, o calor que fazia lá fora se repetia. Ao olhar para rostos cansados, ele sabia que aquele dia seria como qualquer outro. O caminho ao trabalho era o mesmo, só seria alterado se ocorresse uma hecatombe. “Era só o que me faltava”, reclamou depois de ouvir do condutor do metrô que a viagem até a estação Vila Madalena atrasaria por “motivos técnicos”.

Como não havia mesmo muito que fazer, procurou por uma revista em sua bolsa, lotada de coisas inúteis: milhares de papeizinhos azuis das compras que fez pelo cartão, um guarda-chuva daqueles bem baratos, uma agenda que ganhou de presente da chefe… Imprevisível como era, desistiu de ler a revista e preferiu observar as pessoas.

Não havia muita gente no vagão. Eram 10h30 da manhã. O horário de pico – se bem que São Paulo não tem mais horário de pico – já fora há algumas horas, e naquele horário era comum ver idosos, estudantes e donas de casa, gente que anda com menos pressa de chegar ao seu destino.

Olhava para todos os lados como se estivesse em busca de algo. Talvez quisesse se sentir mais vivo, apesar do calor que já o incomodava. Reparou que, quase ao seu lado, uma senhora o olhava com certa ternura. Pensou em sua avó, que morrera poucos dias antes. Lágrimas quase se formaram em seus olhos, mas daí lembrou que não podia se mostrar fragilizado. “Não posso chorar”, pensou. “Ela pode perceber”. Não queria se abrir com ninguém, estava preocupado com o horário e sabia que aquele não era um bom momento para dividir sua tristeza com uma desconhecida.

A senhora, que parecia ter lá seus 80 e poucos anos, realmente não parava de observá-lo. “O que será que está chamando a atenção dela?”. Resolveu interagir timidamente, tentando descobrir por que ela o olhava daquela maneira. Entre um sorriso e outro – não, não seria daquela vez que iria puxar assunto – quase se emocionou novamente quando percebeu que a velhinha usava a mesma colônia de sua avó. Um cheiro leve e suave tomou conta do vagão e um filme rápido dos momentos intensos que viveu ao lado daquela que considerava sua segunda mãe passou pela sua cabeça.

Lembrou do carinho que recebeu ao longo de toda sua vida, do zelo e da preocupação que sua avó tinha com ele. Recordou-se também dos momentos em que encontrava nela um refúgio, um colo para chorar o quanto quisesse. Quando sua avó deixou esta vida, aos 95 anos, ele não lamentou sua morte, mas sim a crueldade do tempo, a perenidade das coisas. Ainda assim, pensou, “minha avó viveu intensamente”.

Todas essas lembranças se transcorreram em poucos minutos. Eram 10h40 e o trem começou a andar, agora mais rápido. Faltava apenas uma estação para o destino final e a senhora, que nunca havia visto antes na vida, olhava para o nada, como se estivesse perdida.

Ao chegar à Vila Madalena, pensou que deveria ajudá-la a sair do trem, mas ela foi mais rápida que ele. Quando cruzou ao seu lado, a senhora deu mais um sorriso. Era talvez um sorriso de despedida. Não sabia se voltaria a vê-la, mas tinha certeza que aquele momento mágico, que o transformou completamente e o fez lembrar alguém que amava, permaneceria para sempre na memória.

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