Antes eu falava e lia assim: "a sociedade é muito preconceituosa". Aí a fodona Rosangela, professora de antropologia, explicou um dia na sala. "Quando dizemos ‘a sociedade blá blá blá’ estamos falando especificamente de quem?" Aí ela continuou. "Quem é essa sociedade?, Nós somos. Cada um aqui".
Foi ali que aprendi que botar a culpa dos problemas sociais na "sociedade" ou no "povo" é uma forma que nós, seres humanos, temos de nos distanciar desses problemas, jogando essas coisas que incomodam para baixo do tapete. Dizer que a sociedade é preconceituosa, sem, no entanto, se considerar parte integrante dela, é uma forma não somente de se ausentar da mazela, mas de não se enxergar como parte da solução.
Continuando o ensinamento rosangelístico. Se a palavra "povo" – ignorante, sujo, porco, preconceituoso, pobre, analfabeto, faminto, em suma tudo que há de ruim – fosse personificado em uma figura humana e palpável, hoje esse "povo" talvez estivesse morto. Já que "ele" é o grande responsável pelas mortes, pela violência, pelo sofrimento, pelo transito caótico, poluição e pela homofobia.
Por que estou falando tudo isso? Porque acho necessário dividir esse ponto de vista e provocar talvez alguma reflexão. Ainda não digeri muito bem o protesto em Carapicuíba que teve a participação de cinco pessoas e não digeri mais ainda alguns comentários meio senso-comum que vieram após a publicação da matéria.
Os primeiros que se manifestaram foram num tom mais ou menos assim: "Nossa, se fosse festa de música eletrônica com plumas e paetês estaria cheio". Até que no final do dia um leitor pegou e falou "sujo falando do mal lavado". Essas pessoas que escreveram "inconformadas", com o "fiasco" do protesto – e criticando a falta de politização de outras – também não estavam lá lutando pelos direitos da comunidade. Ou seja, a oportunidade que tiveram para "provar" que são inteligentes, politizadas, que "se a parada não dá certo, façamos de outro jeito" foi desperdiçada. E por quê?
Fico pensando muito sobre isso. Presença em eventos de militância, vida pessoal e vida profissional. Se não estivesse a trabalho, com a tarefa de cobrir a manifestação, teria eu pegado o metrô e ido até o Parque dos Paturis? Pouco provável, talvez. Um lado meu ia querer ficar em casa jogando vídeo-game, ou namorando ou assistir ao show do Samba de Rainha lá no Anhangabau. A outra metade de mim ia querer ir no protesto, justamente porque sei a importância que isso tem.
Pensar que se eu não trabalhasse num veículo de mídia especializado – como digamos é o caso da maioria dos nossos leitores, que teoricamente seria "a base" do movimento e fariam "volume" na manifestação – milhões de compromissos ou motivos pessoais, dos mais sérios aos mais banais, podiam ter me impedido de comparecer ao evento é algo que me deixa um pouco mal.
A idéia de que se eu não tiver esses compromissos pessoais com a causa, que vai além do compromisso profissional com o veículo, em um dia num futuro muito muito distante (eu espero) em que eu deixe de trabalhar em mídia gay, é algo que vai me fazer entrar em crise. Isso porque acredito ainda na diferença que cada um pode fazer. Seja pelo movimento gay, seja pelo meio ambiente ou qualquer causa que lhe pareça justa. Juro que uma vez fiquei abismado de ver um militante gay jogando lixo na rua – achei de uma incoêrencia tão grande e falei pra ele, que recolheu o lixo "só" porque eu pedi. Se ele ler esse texto, vai saber quem é.
Talvez eu tenha me perdido um pouco na argumentação do texto, mas o que é importante deixar registrado é o fato que não dá pra se excluir do problema como se não fizéssemos parte dele e de sua solução. E pior que isso é jogar a responsabilidade para cima de outros – como se estivessem errados, ou totalmente errados, aqueles que vão a parada só por causa da música ou da festa. O fato das paradas hoje serem como são é sintomático conjunto de uma série de fatores, mas depois em outro texto me aprofundo um pouco mais nessa questão.
E é uma postura conformista ou acomodada que permite que as coisas continuem como são.