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Disparatada: A luta de uma travesti adolescente contra o Estado, a Mídia e a Lei

Quebrando o preconceito que ainda existe contra os adolescentes, Nell Isabelle é a prova de que maturidade, sabedoria e coragem têm tudo a ver com juventude. Aluna do Ensino Médio, sonhando com a Universidade, é uma entre tantas travestis que sabem o que quer. Ela vive em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

No entanto, é insuportável para os conservadores ignorantes por convicção (não me refiro aos conservadores ignorantes por falta de chance de serem sábios) que uma travesti possa ser sabiamente superior a eles.

Para quem tem dúvidas de que Isabelle existe e é motivo de orgulho para qualquer brasileiro, basta ver a entrevista que fizeram com ela; reportagem, por sinal, duvidosa, porque ao invés de informar corretamente os direitos da jovem (nem precisaria valorizar a sua coragem), reforçou o conservadorismo dos ignorantes.

Fiquei me perguntado o motivo pelo qual a repórter não foi procurar entrevistar gente mais bem informada que o tal promotor, pelo menos para ouvir o outro lado da interpretação sobre a legislação em questão. Porque ela e seus/as superiores/as não fizeram bem o seu trabalho enquanto profissionais da comunicação?

Também me questionei o porquê do tal promotor ainda acredita que o corpo é que define o sexo. E, pior, o porquê dele seguir pensando que alguém com um corpo tido biologicamente como masculino pode ser em si ameaçador às meninas. Por que ele não foi se informar com a Isabelle e outros/as adolescentes da escola que deram depoimentos mais sábios e menos essencialistas à repórter?

Ao mesmo tempo em que tive acesso a história de Isabelle, soube das tentativas do PSC em assumir a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Quando o partido dos ditos cristãos logrou o que queria e, evidentemente, se fez representado por um pastor acusado de intolerância religiosa, racismo e homofobia, não tive dúvidas, imaginei como seria um encontro entre Isabelle e o mais novo nome dos não-direitos humanos do país. Afinal, ela também tem muito a ensinar a esse deputado pastor, vocês não acham?

Um amigo me disse preconceituosamente que nesse imaginado encontro o pastor iria ficar com inveja dos cabelos de Isabelle porque são mais lisos e lindos do que os dele e pediria o cartão bancário com a senha da menina para garantir um milagre. Eu acho que não. Acho mesmo que o pastor deputado não daria conta da conversa com a garota, afinal, penso eu, ele faz parte do grupo dos ignorantes por convicção.

O Código Civil e a Certidão de Nascimento, citados na reportagem, quando lidos de forma fundamentalista, são tão perigosos (no mau sentido da palavra) quanto a Bíblia, comumente citada nos discursos políticos do deputado pastor.

Apesar de nem tudo que é perigoso ser ruim, o que me preocupa é que em contextos de falta de sabedoria, tudo que pode ser bom, se torna maldosamente ameaçador, maléfico, violento e injusto.

Por exemplo, Isabelle é corajosa, mas tem medo de ir ao banheiro dos meninos, e, lógico, se é uma adolescente feminina, vai se envergonhar em ter que usar o dos adultos professores homens. Ainda que tenhamos que assumir que o fato do diretor tentar fazer algo seja bom, porque muitos outros simplesmente ignorariam Isabelle, a ideia é absolutamente ridícula! Eu teria medo desse diretor! As pessoas que acham que tem como resolver um problema como esse simplesmente oferecendo alternativas como essa, não são verdadeiras educadoras.

O que me faz ver essa história com esperança é que não são eles/elas que são contra a Isabelle, é ela que está contra a ignorância deles/as. Ela é mais esperta do que eles/elas todos/as juntos/as, porque a situação que ela criou na escola demandou diferentes poderes: o Estado (na pessoa do despropositado diretor), a Mídia (na suposta neutralidade maldosa da repórter – e de quem é responsável por exibir o que ela produziu) e na Lei (através do desinformado promotor).

O problema é que, devido à nova Comissão de Não-Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Isabella e tantas/os outras/os têm um espaço a menos para recorrer. Porque, sozinha, ainda que tenha muito poder, não é mais forte do que o Estado, a Mídia e a Lei mal interpretada.

Ela e nós estamos mais fragilizados nesse aspecto. Ainda que a mobilização pela luta por direitos neste país tenha se fortalecido diante do absurdo de ter um pastor do perfil que assumiu a presidência de tal comissão, perdemos um lugar de poder que tinha como objetivo a luta pelos direitos que conquistamos mais ainda não garantimos. Vamos ter que recuperá-lo, construir outro ou melhor ocupar os espaços que nos restaram.

Eu queria me encontrar com Isabelle e queria que existisse mais Isabelle em todos os lugares, queria que pessoas como ela ocupassem lugares como o do diretor, o da repórter e o do promotor. Acima de tudo, eu queria que existissem Isabelles na Câmara dos Deputados, para que eu, ela, você e tantas outras pessoas, não apenas tivéssemos mais direitos, mas fossemos mais humanos.

*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.

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