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Disparatada: A vida é mais forte do que a Aids

Há mais de duas décadas, legitimando o discurso do medo e o da responsabilização individual pela infecção do vírus HIV, o Ministério da Saúde divulgava o seguinte slogan de uma de suas campanhas de prevenção à Aids: "Se você não se cuidar, a Aids vai te pegar". De lá para cá muitas coisas mudaram no discurso e na prática cotidiana institucional e política de enfrentamento da epidemia, especialmente devido à mobilização dos movimentos sociais voltados à defesa da vida.

Hoje sabemos que somos referência mundial no tratamento e na assistência às pessoas vivendo com HIV Aids, assim como temos tido exemplos de bastante sucesso no campo educativo-preventido. Porém, ainda há muito que transformar, seja no âmbito governamental, como no do movimento social.

Apesar dos alertas, muitos continuam desrespeitando a máxima "use sempre camisinha", e aqui estão os conservadores e os mais revolucionários. Para esta atitude de desobediência não há limites de classe, raça, sexo, gênero, sexualidade, ideologia, religiosidade, santidade, idade e etc. Mas, é preciso reconhecer que o não cumprimento desta ordem não atinge todas as pessoas da mesma maneira. Sim, há pessoas que estão em contextos (materiais e/ou subjetivos) mais vulneráveis a infecção. Isso não é o mesmo que pensar no ultrapassado e preconceituoso conceito de grupo de risco, mas pode nos ajuda a refletir sobre responsabilidades compartilhadas em relação aos processos de enfrentamento da doença e, ao mesmo tempo, a constante necessidade de mudança no foco moral que persegue a epidemia desde a sua popularização. 

Mesmo sabendo que podemos morrer de muitas formas, que não necessariamente doentes de Aids, não é simples relativizar o medo e o pânico que há muito tempo rondam a temática desta doença, especialmente entre parte daqueles que tem vivências do gênero e da sexualidade tidas como "não normais", "perigosas", "promíscuas" ou "não responsáveis". Um dos desafios ainda continua sendo o mesmo de muitos anos atrás: não fazer com que a doença nos torne menos ousados e inovadores em nossas práticas sexuais! É preciso reforçar a idéia de que a Aids não existe para nos alertar dos limites que possivelmente foram ultrapassados por aquilo que chamam de imoralidade ou senvergonhice.

O erro histórico em relação a Aids foram os processos de patologização do desejo, criminalização dos prazeres e hierarquização dos gozos; como se existissem culpados e inocentes em relação aos fluxos libidinais que foram apontados como responsáveis pela doença. A caça às bruxas mantida contra gays e a perigosa moralidade que criou uma falsa idéia de proteção para os heteros ainda respingam em nossos dias, alimentam parte dos discursos estigmatizantes e mantêm os obstáculos no enfrentamento da epidemia e na defesa da vida.

Porém, não defendo a idéia de que o estigma tenha que ser eliminado, de que os estranhos e subversivos tenham que entrar em uma lógica moralizante para mostrar que são iguais aos outros e merecem os mesmos status. Não. O inverso se faz urgente. É preciso denunciar que não há quem escape a estigmatização da desobediência às práticas tidas como saudáveis, morais e responsáveis no âmbito da vivência da sexualidade. Porque o desejo (seja de quem for) não corresponde a lógicas necessariamente e exclusivamente racionais, morais e saudáveis. Como, já no final da década de 1980, nos ajudou a refletir o poeta e antropólogo Néstor Perlongher em seu livro "o que é Aids", a questão é a de pensarmos em um instável compromisso entre risco e gozo, sujeito ao vaivém do desejo. E, mais do que viver estas experiências do desejo com culpa e peso na consciência, é preciso vivê-las com alegria. Segundo ele, "seria paradoxal que o medo da morte nos fizesse perder o gosto da vida".

Este pensamento pode parecer perigoso demais. Muito irresponsável. Quase um incentivo ao não uso do preservativo. Ameaçador a saúde pública. Coisa só de promíscuos e pervertidos. Mas, vejamos, em se tratando do não uso da camisinha, também não fazem uma opção em prol do compromisso entre gozo e risco aqueles e aquelas que seguem as regras papais, que acreditam no casamento santificado e protegido via as palavras dos pastores, quem se vê protegido demais pelo sobrenatural, quem aposta no amor, quem confia na aliança, quem defende o sacramento, quem apela a Deus, quem acredita sem limites nas palavras do outro, quem defende o amor romântico, quem testa a sorte? Seríamos todos perigosos, irresponsáveis, promíscuos e fonte de ameaças? Quem seriam os seguros, protegidos e responsáveis? Neste contexto, o maior risco é o de continuarmos acreditando na divisão moralmente construída de que existem sexualidades boas e ruins.

Como grande defesa da vida e alimento às nossas lutas, inclusive a do enfrentamento da Aids, que envolve o incentivo ao uso do preservativo (masculino e feminino), devemos valorizar o desejo, sem tomá-lo como inimigo. Os imponderáveis que ele envolve não são as maiores ameaças. O perigo está em tentar anulá-lo. Como escreveu Néstor, "a vida não se mede apenas como quer a intuição médica, em termos de prolongação da sobrevida (ou da agonia), mas também em intensidade do gozo. A dimensão do desejo não deveria ser negligenciada, se é que se trata de salvar vidas". Se "a vida é mais forte do que a Aids", como diz o slogan de uma das campanhas mais recentes do Ministério da Saúde, também é verdade que a Aids não vai acabar com o desejo e os seus caminhos variáveis, às vezes mais, às vezes menos controláveis.

 *Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.

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