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Disparatada: “Ai, como eu tô bandida!”

Um e-mail em meio a uma tarde de domingo me fez pensar em o que tem me feito rir em algumas noites de sábado. Na verdade, já havia desconfiado do meu riso, mas confesso que depois da referida mensagem eletrônica fiquei mais pensativo. No e-mail lia-se o depoimento de uma mulher dizendo que estavam incentivando, via um programa humorístico, o abuso sexual contra mulheres trabalhadoras, usuárias dos metrôs e trens das grandes cidades.

A referencia era, se me permitem, às nossas queridas e adoráveis Janete e Valéria do "Zorra Total", especialmente quando uma destas diz estar sendo "bulinada" por um homem e, a outra, antes de defendê-la, tenta convencê-la de que é melhor ela aproveitar, porque "não está podendo escolher". Vale lembrar, sem a pretensão de defender a emissora de TV, de que no e-mail não é citado que o quadro termina comumente com a amiga protegendo a suposta vítima.

A primeira vez que me deparei com essas duas personagens me surpreendi com o que tem sido inegável, a excelente interpretação dos atores Thalita Carauta e Rodrigo Sant'Anna. Depois, ainda sem parar de ri, fiquei pensando em alguns aspectos que me parecem inovadores na imagem risível do efeminado e/ou montada deste quadro se comparado com outros já transmitidos na TV brasileira.

Primeiro, não há uma relação de inimizade entre uma personagem mulher e uma personagem "vestida de mulher". A despeito das tensões nas relações das duas, há uma cumplicidade acolhedora entre elas, inclusive envolvendo gestos afetuosos, em meio a falas debochadas e impacientes da Valéria ("a bunita!"). O fato de não haver competição e rivalidade entre a mulher e, aos olhos de muitos expectadores, "um homem que se diz mulher", as personagens deixam de lado uma linhagem de outros personagens onde isso era impensável. A forma como elas se relacionam não dá margem a interpretações que ainda são presentes no sendo comum: a de que, no fundo, os homens efeminados não heterossexuais sempre sentem inveja das mulheres.

Também não existe controle ou cerceamento violento (se preferirem, homofóbio) contra o personagem homo-orientado, seja pelos demais personagens ou figurantes do quadro, seja por um apresentador amado pelo público. Nem mesmo um policial, um professor, um médico ou qualquer outro representante do Estado (servidor público) aparece na cena para recriminar qualquer performance daquela, segundo ela mesma, "que virou mulher". E isso não acho que seja pouca coisa. Porque, cotidianamente, não é isso o que ocorre. No mundo real, qualquer pessoa menos discreta do ponto de vista da sexualidade e do gênero sabe do que eu estou falando.

Mas, o que mais me agrada, é que não está em jogo na cena uma sedução via corpos tidos pela maioria como sendo gostosos, jovens, bonitos e desejados. Ainda que se faça alusão a homens bonitos, os que estão disponíveis no vagão são sempre homens "não galãs", que na mensagem final não tem sido desvalorizados por terem os corpos que não é aquele que querem nos convencer a idealizar. Há sedução fora do que tem sido padronizado como objeto de desejo, prova disso também são os corpos das duas personagens que, sem considerar as falas da Valéria para com a Janete, jamais são rechaçados em cena.

Então, isso minimiza a possível interpretação de que o quadro pode naturalizar ou banalizar a violência contra a mulher? Não, evidentemente. Mas, o que mais me interessa pensar aqui é o quanto muitas das situações cotidianas e/ou midiáticas não podem ser vistas como sendo ou somente boas ou somente más, exclusivamente reprodutoras ou exclusivamente transformadoras da nossa realidade, 100% ameaçadoras a construção de um mundo menos violento contra a mulher (e os efeminados) ou 100% fortalecedora de realidades de maior liberdade e igualdade.

A performance de gênero e as expressões de uma sexualidade tidas por muitos como subalternas poderiam ficar alocadas (isoladas) no sábado à noite. Mas, tem invadido nossas manhãs em entrevista dada pelos atores ao "Mais você" e chegou até a cunhar o jargão "Ai, como eu tô bandida…" na campanha super familiar "Criança Esperança". O humor pasteurizou o escândalo presente em uma personagem que já foi homem e se diz mulher? Ou esse sucesso todo é sinal de que há possibilidade de identificações, inclusive de crianças, com a imagem de feminilidades não hegemônicas? Será possível uma identificação de um público, muitas vezes conservador, com experiências de humanidades rechaçadas também fora da "telinha"? Poderíamos, sem ingenuidade, usar do sucesso de Janete e Valéria para criar novos referencias, via o riso, de reconhecimento de experiências vergonhosas fora da lógica da discrição e do politicamente correto?

Há quem diga que, diante de algo bem humorado, ou se ri despretensiosamente ou se faz críticas e análises racionais. Para uma amiga, não podemos ser sempre críticos, senão "perde a graça" e "nos tornamos muito chatos". Eu, particularmente, não acho simples fazer tal separação, por achar perigoso rir de tudo que possa parecer engraçado a primeira vista. No entanto, também acho difícil estar sempre ligado ao que, via o nosso riso, acabamos reproduzindo de conservador e violento (que pode recair em um instante sobre nós mesmos). Sem fazer apologia ao que muitos têm visto com desprezo, tenho tentado exercitar algo que acho necessário: refletir e criticar, sem deixar de me divertir.

*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.
 

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