O final da novela "Salve Jorge" apresentou uma cena absurda. Russo, personagem mau, agressivo, violento, desumano e perigoso, foi preso e torturado.
Quando vi que uma das policiais chamou as garotas que ele agrediu e ameaçou durante toda a novela para ir ao quarto onde ele estava algemado só de cueca nas grades da cama, logo imaginei: irão zombar dele! Ingenuamente cheguei a pensar que ela tinha trocado as roupas dela com as dele. Mas não imaginei que de hilário nada teria.
O que se viu quando as garotas entraram no quarto é algo bastante comum no Brasil, mas que deveria ser inaceitável. A policial, contraditoriamente, avisou que a polícia não poderia saber o que se passaria ali, e sugeriu que as garotas devolvessem toda a agressão sofrida. A cena de tortura começou com a protagonista da trama dando a primeira bofetada. Na sequência foi a vez das outras darem tapas, socos e murros no imobilizado.
Fazer justiça com as próprias mãos não parece nada ameaçador no horário nobre. Os gestos de violência foram cometidos entre risos e gargalhadas das personagens. A imposição da dor física simplesmente por prazer da pessoa que tortura pareceu agradar os fãs da novela, afinal, não vi nas redes sociais ninguém reclamando que se sentiu ofendido com as imagens, pelo contrário. Alguns comentários referiram-se a cena como algo que "todos" queriam participar.
Criticar e combater a tortura não é o mesmo que salvar as pessoas más ou culpadas. Responsabilizar com justiça e discernimento é preciso, não se trata de livrar ninguém da culpa que tem. Mesmo porque, o importante a ser entendido é que nada há de seguro que a tortura de hoje (que aflige o outro) em um momento seguinte não pode cair sobre nós mesmos.
Se vencer o mau reproduzindo o mau é agradável aos olhos da maioria dos telespectadores, como podemos pensar em um mundo em que as pessoas sofram menos ou sejam menos violentas? A ficção tem poder e por mais que alguns possam afirmar, "ah, mas é uma obra inocente, com o objetivo de entretenimento", ela produz e reproduz verdades, está em um espaço de disputas e defesas de valores que em nada são ingênuos.
Se isso não fosse verdade, não escutaríamos: "Ninguém quer ver um beijo gay na novela". Em uma sociedade em que a violência está naturalizada é mesmo mais difícil de valorizar as múltiplas expressões de afetos e desejos. Tampouco é fácil de compreender que a novela escolhe reproduzir uma cultura absurda e perigosa, em detrimento de expressões menos autoritárias e agressivas.
A surra que Russo recebeu das mulheres não foi justa, porque justiça se faz de outra forma. Não é justo defendermos que a agressão é legítima quando se trata de culpados serem as vítimas, assim como também não é justo que a expressão de amor (como um beijo) seja compreendida como ilegítima quando se trata de viados.
Parece-me ainda mais grave o fato de mulheres policiais chegarem a posições de poder, como a delegada e as policiais investigadoras da trama, e reproduzirem o mesmo padrão ilegal e violento de alguns homens policiais. Evidentemente que não se pode, de forma essencialista, esperar que agissem de forma diferente por simplesmente serem mulheres, mas isso mostra que não basta chegar lá. As mulheres em posições de poder como essas devem assumir o mesmo desafio que os homens que estão lá há mais tempo: cumprir a lei, respeitar os direitos humanos de todos, e fazer valer a justiça da maneira que se estabeleceu juridicamente.
Segundo uma matéria jornalística da revista Isto é, "Não existem números confiáveis sobre tortura no País. Como se trata de um crime praticado, em geral, por policiais ou carcereiros, as vítimas têm medo de denunciar".
Nesta mesma matéria, a verdade sobre a realidade desse tipo de violência no Brasil foi dita por Margarida Pressburger, integrante da ONU: "A tortura no País é cultural, generalizada e sistemática. Começou no período da escravidão e se mantém até hoje". Ela, afirmou ainda: "A vocação brasileira para a tortura se solidificou porque os torturadores não são punidos."
Na novela, como na vida real, a tortura policia não foi punida; sequer denunciada. Assim, enquanto o beijo gay parece ofensivo e impróprio, vamos engolindo violências consentidas e revestidas de legitimidade, quando na verdade, deveriam ser reconhecidas como afrontas a nossa forma de pensar uma sociedade menos violeta e mais justa, para todos.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.