Não. Esta manchete não é verdadeira. Poderia ser, mas não é. Uma pesquisa de mestrado defendida na Faculdade de Educação Física da Unicamp, intitulada "Enunciações afetadas: relações possíveis entre homofobia e esporte", cita que no final da década de 1970 os torcedores gays gaúchos já haviam colocado a cara a tapa e ousado na paixão pelo futebol criando a "Torcida organizada Coligay"!
Rodrigo Braga do Couto Rosa, autor do estudo, conta que no mesmo período também surgiu a "Fla-gay", torcida organizada do "mengão" carioca. Esta, inclusive, chegou a ser proibida de entrar no Maracanã por parte da presidência do clube da época.
Hoje, como naquele tempo de ditadura militar, não faltam torcedores gays. Na última parada do "orgulho LGBT" de São Paulo, por exemplo, a pesquisa da Datafolha revelou que entre os frequentadores da Parada, 35% se declararam corintianos, 22% eram são paulinos, 11% torcedores do Palmeiras e 5% do Santos.
Mas, por que retrocedemos em relação a este tipo de visibilidade nos campos de futebol Brasil à fora? Ou alguém aí conhece hoje alguma torcida gay (ou lésbica, travesti, bissexual…) de futebol que tem ido organizadamente, com direito à bandeira e camisa do time, torcer nos campos de futebol? Se conhecerem, divulguem. É uma raridade!
Dentro de campo não é diferente. Sábio é o Richarlyson que afirmou o que todo mundo já sabia: "nenhum jogador vai assumir que é gay". Nisso, os galãs das novelas estão na mesma dos jogadores de futebol, afinal, são orientados a jamais serem francos em relação aos seus desejos caso não forem heterossexuais. O próprio Aguinaldo Silva disse: "Acho justo que ele não assuma porque todo galã vende a ilusão de virilidade. Se ele assumir que é homossexual, quebra o encanto, marca a pessoa".
Esse é o problema. As pessoas ainda confundem, em campo e na TV, virilidade com a masculinidade padrão do galã global ou do jogador de futebol dito heterossexual. E isso é, como disse Aguinaldo, pura ilusão. Eu conheço um monte de bicha viril que não deixam de ser pintosas, quá-quá-quá, fechativas, femininas. E, muitos sabem de histórias íntimas de jogadores que curtem outros jogadores.
Mas, é claro que o Fantástico não iria mostrar duas bichas se beijando caso elas fizessem parte de alguma torcida de futebol. Então, além do fato de não existir mais torcidas gays organizadas nos estádios (o que não significa que não tenham gays nas arquibancadas) é preciso entender pra que serve o beijo na telinha do domingão à noite.
O quadro do Fantástico é uma ode ao amor heterossexual, e faz sentido ser repetido todos os domingos porque, naturalmente, heterossexualidade e beijo não têm nada a ver com amor. Se fosse assim, os héteros só beijariam quem eles amam (a mesma afirmação serve para a homossexualidade). Por isso, é preciso reiterar a todo o momento que homens e mulheres devem se beijar em público, e, melhor ainda se tiver criança no meio, que é o que muitas imagens do quadro apresentado pelo charmoso Tadeu Schmidt revela a cada domingo.
Os meninos precisam aprender desde cedo que beijar meninas e jogar futebol é muito bom, as meninas precisam aprender desde cedo que ir ao campo e beijar o marido, além de torcer para o mesmo time dele, é lindo. Se tudo isso fosse natural, não tinha necessidade da "câmera do beijo", as pessoas iriam fazer igualzinho sem serem motivadas.
Mas, e se, por um erro de edição do quadro e por um milagroso ato de coragem de meia dúzia de bichas assumidas e torcedoras de futebol, aparecesse mesmo um casal gay na "câmera do beijo" do Fantástico? Elas sairiam vivas do estádio? Tadeu se desculparia afirmando que tiveram um problema técnico? A torcida organizada dita não-gay reagiria com ódio nas redes virtuais?
Enquanto isso não acontece, segue tudo como tem sido. A semana começa com mais uma respeitosa defesa do amor romântico, misturado com futebol para garantir a tal ilusão da virilidade, sem nenhuma referência a cenas como a que Rodrigo descreveu em seu estudo e que reproduzo abaixo.
"Já é noite feita. Acabo de retornar do Estádio Moisés Lucarelli, casa da Associação Atlética Ponte Preta, equipe que há minutos atrás perdeu o jogo válido pela décima terceira rodada do Campeonato Paulista da série A1 de 2010. Perdeu para o São Paulo Futebol Clube, por 2 a 0. Fui ao jogo porque queria ter a experiência de dividir o estádio de futebol com Richarlyson e outras milhares de pessoas, entre jogadores e trabalhadores do espetáculo e torcedores/as.
Mas especialmente, queria estar com Richarlyson. Queria ver a Torcida Independente gritar os nomes dos componentes do São Paulo e ignorar o do suposto gay que os envergonha. Apesar de não conseguir discernir absolutamente tudo que a torcida entoava, estou seguro que não ouvi o nome dele. Lembro-me de gritarem pelo Rogério Ceni, pelo Dagoberto, Marcelinho Paraíba[…] mas nada de Richarlyson. Fui também para ver como se comportavam torcedores diante de um adversário que escolheram ser gay e o que presenciei superou minhas expectativas. Além dos termos viado e bicha – com seus respectivos desdobramentos derivados dos mecanismos da língua que chamamos de aumentativos e diminutivos – serem os mais frequentemente emitidos, depois de filho-da-puta, nada movia mais os torcedores da Ponte do que tentar atingir Richarlyson com palavras.
Quero dizer, ainda que todos os jogadores do São Paulo tenham sido alvejados por gritos de "Bambi!", carga reservada aos que se contaminaram, por atuar naquele clube e por dividir campo, vestiário, folha de pagamento com um "suspeito", o alvo preferencial, sem dúvida alguma, era Richarlyson. Por conta de sua suposta bichice, foram muitos os torcedores que se levantaram, agarraram a própria genitália e a ofereceram ao jogador. Não foram poucas as torcedoras que sugeriram que ele fosse fazer o que elas diziam ser o que ele mais gostava: dar o cu! Tampouco foram poucas as crianças, meninos na sua totalidade, que se esforçavam em desqualificá-lo, escolhendo agregar um "bichona" ao clássico "filho-da-puta", incentivados e incentivadores dos pais e mães que urravam as mesmas frases. Aos meus olhos e ouvidos, as maravilhas do jogo sucumbiram ao horror do seu entorno". (RODRIGO ROSA, 2010)
**Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.