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Disparatada: Quanto custa um bumbum?

As vezes acordo e assisto Ana Maria Braga. Ajuda a exercitar a distração durante o café da manhã, é muito bom, mas às vezes irrita. Na semana passada, por exemplo, o tema da manhã era sobre "as duas paixões nacionais": bumbum de mulher e o Corinthians.

A pergunta "quanto custa um bum-bum?" que apareceu na tela me chamou a atenção. Apesar de não ser o bumbum das mulheres a parte do corpo humano que mais me atrai, e de eu não ser corintiano, insisti em ver no que iria dar.

De forma corrente a TV brasileira tem sido machista e heterocentrada em sua fórmula de sucesso para atrair telespectadores. Disso, ninguém mais duvida. Está claro para todo o mundo. Por isso, não me surpreendeu o investimento da TV Globo nessa temática logo de manhã. Afinal, há retorno financeiro. Inclusive, eu mesmo não mudei de canal.

Com uma dedicação especial às calcinhas com enchimentos para "dar um levante" na bunda e nas aulas de exercícios das acadêmias para as mulheres "ganharem um bumbum", o tempo da abordagem televisiva sobre o assunto foi passando. O meu café já tinha terminado e as bundas não saiam da minha tela, em grandes tamanhos e diferentes texturas.

Achei de uma objetividade absurda um dos educadores físicos entrevistados afirmando algo do tipo: "Os glúteos são uma exigência do mercado fitness nacional". Sim, é verdade, muitas as mulheres e muitos homens consomem bunda. Tem um valor de uso e um valor de troca! E, claro, como tudo no capitalismo, está envolto por um fetiche enquanto mercadoria que não nos deixa enxergar as coisas como elas realmente são, ou como elas chegaram a ser como são. Salve Marx!

Mas, como meu objetivo era me distrair, tentei não ser tão crítico. Voltei a atenção para as imagens da tela: calças agarradinhas em meninas muito jovens, mas, sem cérebro. E, aqui, não me refiro ao sentido figurado do termo. Não faço uma crítica à inteligência dessas mulheres. Chamo a atenção para o fato de o tempo todo nas imagens, externas e as ao vivo do estúdio, as mulheres serem mostradas sem cabeças. Ficavam de costas, e em alguns momentos atrás de uma espécie de parede que começava acima da bunda e seguia até acima das cabeças para mostrar somente o que interessava.

O recurso da retirada das cabeças das "imagens sedutoras" não tem sido usado somente pela televisão. Vários sites de encontros, inclusive voltados para o universo gay, usam dessa estratégia de, digamos, marketing pessoal. Os internautas são os maiores apoiadores e executores dessa estratégia. O que se admira são as partes, não necessariamente o todo, por isso, os corpos são postados em pedaços isolados, fatiados, cindidos, objetivamente selecionados. 

A cabeça, isto é, a face, quase nunca se divulga. Onde fica o cérebro tem sido cada vez menos atraente. A identidade nesse momento não tem a menor importância, o que vale é a impessoalidade.

Lembrei-me do Carlos Drummond de Andrade, que poetizou sobre a bunda escrevendo:

"A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se".

Acho que o Drummond estava certo. Se pensarmos como ele e contextualizarmos a bunda independentemente do que se vê do outro lado dela, podemos declarar: a bunda não tem sexo! Por isso, traz em si um sinal de igualdade, ainda que o programa de TV se referisse somente às bundas das mulheres, midiaticamente muito mais expostas e exploradas do que as dos homens.

No centro das nádegas, chamadas por Drummond de "duas luas gêmeas", tem algo que nos torna muito poucos diferentes: o ânus. Evidentemente um órgão sexual importantíssimo, tanto para os homens como para as mulheres, porque os seus bons usos são inegáveis para as diferentes sexualidades.

Mas, na televisão é assim, imagina-se e foca-se no c*, porém só se mostra e fala da bunda tida como feminina, protege e finge não ver as bundas dos homens para tirar o deles da reta. É um processo de tornar as coisas mais veladas, mesmo sendo escrachado. Até pra abordar a bunda, a TV é muito inteligente, ainda que seja pouco disparadora de reflexões e críticas, mesmo reproduzindo valores que em nada são louváveis.

É o seu jeitinho de nos fazer acreditar que somos todos apaixonados pelas bundas das mulheres como ninguém é em qualquer outra parte do mundo, que somos uma massa que torce, seja contra ou a favor, para o Corinthians. É o jeito sexista de nos unirem enquanto nação pela bunda feminina e pelo futebol, e o resto que se  f#$x&%!

Então, as velhas, as gordas, não siliconadas, que não malham, que são classificadas como feias, aqueles que não são corinthianos, que não gostam de futebol, que não têm tesão por bundas, ou que curte as dos homens e bem peludas, aqueles que não olham pra traz quando uma mulher passa, aquelas mulheres que não são bundas, as que não estão com tudo em cima, os que querem mais educação e menos futebol, não são brasileiros e brasileiras? Estão ruins da cabeça ou doentes do pé? São uma ameaça à identidade nacional?

Eu, particularmente, não pude aguentar e nem esperar para assistir até onde iria a abordagem sobre essas "duas grandes paixões nacionais" no programa em questão, não sei no que deu, nem as bundas, nem o Corinthians. Tive que "pingar meu colírio alucinógeno", como diz o outro, e ir tomar o ônibus para o trabalho. Meu café da manhã durou pouco e tive a nítida sensação de que nem tudo é sempre bom pra nos distrair, que temos que nos cuidar para não começarmos o dia irritados com o valor estipulado de uma "boa bunda" no mercado nacional.

*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.

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