Vocês já imaginaram o mês que passou sem indignação e revolta? No dicionário, indignação é definida mais ou menos assim: "sentimento de cólera e desprezo que uma ofensa ou uma ação injusta provocam. Ira, raiva, ódio”. Já a revolta, que pode nascer da indignação, aparece como “ato de provocar grande perturbação, de agitar. Motim, levante, rebelião. Alvoroço, tumulto, desordem. Perturbação moral, indignação, repulsa, náusea”.
Sem indignação e revolta, jamais saberíamos sobre os crimes cometidos contra os frequentadores da Cracolândia. Nunca imaginaríamos o que as autoridades do Estado de São Paulo seriam capaz de fazer com trabalhadores e crianças do bairro Pinheirinho em São José dos Campos; não iríamos saber da violenta repressão preconceituosa de autoridades contra os estudantes negros da USP. Sem indignação e revolta nem teríamos a noção de que atitudes violentas da polícia aconteceram também contra a juventude pobre e organizada que anda de ônibus em Teresina (PI). Nem o bafão da nossa querida Rita Lee não teria sido esclarecedor se a roqueira, indignada e revoltada, não tivesse colocado a polícia no seu devido lugar em seu último show em Aracaju (SE).
Lembro-me de uma amiga indignada com as agressões que elas, as travestis, sofriam por parte de uma Guarda Municipal há alguns anos em Campinas (SP). A mulher fardada aplicava o spray de pimenta no ânus das travestis para inibir a prostituição nas ruas de certo bairro da cidade. Rapidamente o movimento social denunciou esta servidora pública e reivindicou um encontro com os demais guardas municipais para sensibilizá-los, pressioná-los e formá-los para uma abordagem que respeitasse os direitos humanos.
Mas, quando discutíamos a proposta, esta amiga chamou a atenção para uma enorme incoerência: “Logo eu, travesti de rua, puta, sem estudos, que tenho que ensinar que não se deve aplicar spray de pimenta no cu dos viados? É um absurdo! Estou revoltada! Os agentes de segurança pública, aprovados em concurso público, são pagos com o meu dinheiro ganho na putaria e gastos em impostos. Eles estão na rua para proteger e garantir o direito dos viados de ir e vir, assim como de toda a população, e agora os viados é que vão ter que dizer como eles devem se comportar? Fazê-los entender como se deve usar spray de pimenta? Fazer com que eles compreendam que as armas que eles têm são para nos proteger, e proteger a eles próprios, e não para nos agredir?”
Outro cúmulo da incoerência institucional está estampado nos papéis jogados por helicópteros da Polícia Militar no bairro Pinheirinho de São José dos Campos. No pedido para que as pessoas saíssem de suas casas, lia-se que a missão da polícia é “proporcionar às comunidades a segurança necessária, a promoção da paz social e a realização do bem comum”. Nele também se informava alguns dos valores da corporação: “Respeito ao semelhante, honradez e solidariedade”. O aviso para que desocupassem a área, era, sem qualquer constrangimento, assinado da seguinte maneira: “Nós da Polícia Militar, sob a proteção de Deus, estamos comprometidos com a defesa da vida, da integridade física e da dignidade da pessoa humana”. Nos vídeos do youtube bem se vê o que a Policia Militar compreende como “dignidade humana” e “defesa da vida”.
Talvez o problema esteja exatamente aí, se o Estado criado para ser laico se diz estar “sob a proteção de Deus”, há alguém que, além de ser visto como ameaça ao Estado, é inimigo de Deus. São eles: usuários de drogas nos espaços públicos de sociabilidade, os pobres organizados por moradia, estudantes universitários negros, juventude sem dinheiro para a passagem do ônibus, os roqueiros animados e as travestis prostitutas.
Como não acredito que a proteção do Estado se dá via o Sagrado, pergunto: quem está protegendo a polícia? A resposta é simples: a maioria. Aquela parcela que não se indigna, tampouco se revolta. Que se comporta como se não fosse com ela. Aqueles que também não se vêem como vítimas da chamada “força da lei”. Estes costumam falar coisas do tipo: “Quem invade o que não é seu é tudo bandido”, “lugar de drogado é na cadeia”, “preto não é gente”, “estudante baderneiro tem mesmo que levar borrachada”, “rock é coisa do demônio”, “viado bom é viado morto”, etc.
Isso tudo nos revela que precisamos insistentemente tirar as vendas da cara da Justiça. Deixarmos de acreditar que neste país sempre se julga com honradez. Que a corrupção passa longe dos tribunais e dos seus servidores sentados debaixo de seus crucifixos. É sabido: a lei nunca é cumprida as cegas. E, se assim o fosse, também não seria justo, a justiça não seria feita. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Há que sermos um pouco mais sensíveis, inteligentes e democráticos para compreender que nem tudo que é legal é justo, especialmente em um contexto de tantas desigualdades como no Brasil. A balança não pode ter o mesmo peso e a mesma medida, porque em si mesma, não carrega os pratos dos mesmos tamanhos, muito menos com a mesma profundidade. O buraco é bem mais embaixo. Onde todos não têm os mesmos direitos, não se pode aplicar a lei como se todos fossem iguais.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.