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Disparatada: Sexo anal derruba o capital

Foi o tempo em que palavras de ordem do tipo “sexo anal derruba o capital” eram proferidas em atos do então movimento homossexual brasileiro. Do final da década de 1970 até os dias atuais, muitas coisas mudaram no cenário da diversidade sexual em nosso país. Hoje, antes de voltarmos a fazer alusões ao poder revolucionário das práticas sexuais anais, há de se problematizar o quanto elas também já foram engolidas pelo mercado, afinal, o que não tem sido mediado pelo dinheiro? Por exemplo, como a tendência geral do capital é valorizar algo que possa ser vendido aparentemente como novo, bom, limpo e saudável, em várias situações o ânus tem se tornado cada vez mais o contrário do que parece: sujo, feio, usado e anti-higiênico.

Escrever sobre essa parte do corpo e o que aprendemos a fazer com ela ao longo do tempo me parece necessário na lógica que poucos tem defendido: precisamos re-politizar o cu. Então, porque não o pensamos como alternativa para desestabilizar a falsa naturalidade da diferença sexual baseada no reconhecimento de apenas dois sexos diferentes, opostos e complementares (hetero-centrados) chamados de pênis e vagina?

Nessa lógica, o mais importante é não sermos ingênuos em acreditarmos que sexo anal seja por excelência uma prática gay. Não, pelo contrário. Não existe nada menos identitário e mais democrático do que o prazer proporcionado por traz. O desejo anal não cabe em nossas limitações classificatórias, ainda que seja estrategicamente alocado pelo discurso conservador como sendo algo não adequado aos homens heterossexuais. É preciso libertar a heterossexualidade masculina do medo de curtir o que tem se compreendido como não sendo coisa de homem. As mulheres também precisam deixar de lado a idéia de que esta experiência não combina com o casamento ou as mais valorizadas experiências de feminilidades.

Por isso, acho válida a proposta da filósofa queer Beatriz Preciado. Para ela é preciso pensar em uma sociedade anal-centrica! A idéia é nos unir enquanto diferentes por aquilo que temos em comum, o ânus. Com isso experimentaríamos as relações de gênero e sexualidade fora dos atuais marcadores hierárquicos. Porque, na lógica hegemônica na qual vivemos mergulhados, aqueles que têm pênis e o usa, diz usar ou deseja fazê-lo de forma penetrativa diante de uma vagina têm sido alocados nos mais altos postos morais, criando assim relações assimétricas e desiguais.

Esta reviravolta em nossos olhares sobre nós mesmos não é tão simples assim. Porque, caso engajemos em iniciativas para voltar a valorizá-lo teremos que nos cuidar para não investirmos nas práticas de vaginização do mesmo, como tem sido corrente quando este é mais desejado por não ter pêlos, estar sempre apertado e cheiroso, quase virginal.

Também temos que nos cuidar para, via discursos sanitaristas, não acreditarmos que o sexo anal seja sempre mais vulnerável do que o chamado “reprodutivo”, isto é, aquele não ingenuamente identificado como “papai e mamãe”. Criar ou manter novas experiências sexuais com o ânus não é contra-indicado, pelo contrário, para muitos, não vivenciar estas experiências é que pode ser prejudicial à saúde. Mas, ao tocarmos nesta prática, não podemos nos referir somente a uma dimensão pênis-ânus, antes a uma multiplicidade de possibilidades, seja envolvendo outras partes do nosso corpo ou de outros corpos como também de usos criativos dos objetos ao nosso redor.

Um amigo me contou uma história que logo pensei em o quanto, por mais que tentem controlar os usos anais, eles nunca serão totalmente dominados. Ele, ao ser barrado por diversas vezes na porta giratória de um banco, foi convidado pelo segurança a abrir a mochila, tirar todos os seus pertences e mostrar aos funcionários. Ficou irritado e, dentre seus pertences pessoais inofensivos, sacou um enorme pênis de borracha. Como em um ato heróico, empunhou e levantou o membro rígido e bradou: “Só tenho isso aqui! Querem pegar?” Na seqüência, como por um milagre, as portas giraram e ele pode entrar para pagar as suas contas. “Não, não senhor. Por favor, guarde os seus pertences”, foram as palavras do segurança que tremia e suava frio diante das inimagináveis possibilidades de uso de tal objeto. Risos e espanto se multiplicaram na fila formada pelas pessoas que esperavam o impasse ser resolvido para também passarem pela porta.

Usar da vergonha e do escândalo que felizmente resistem em se manter vinculadas às práticas anais não tem sido possível somente em atos de indivíduos isolados. Há situações coletivas de deboche via alusão às práticas anais que são verdadeiras armas no enfrentamento ao conservadorismo e a falsa moralidade. Lá na Universidade Federal Fluminense, por exemplo, há algumas semanas o nobre debutado Jair Bolsonaro foi impedido de sair de carro via o fluxo normal da rua devido ao protesto de dezenas de estudantes contra a sua já conhecida postura preconceituosa diante de vários temas como o racismo, feminismo e a diversidade sexual. Em meio a palavras de ordem, ouviu-se: “Dá ré Bolsonaro!” e “Sai de ré Bolsonaro!”. Milhares de pessoas já acessaram as imagens do corajoso ato dos estudantes no site youtube.

Com esta reflexão não quero incentivar o sexo anal, porque ele não precisa de incentivo, pois sabemos que apesar da perseguição moral que ainda sofre, multidões o pratica. Mas, pensar sobre seu potencial político e salvá-lo de certas normatizações se faz necessário, lembrando que, como tantas outras coisas na vida, não é o ato em si que é revolucionário, mas a forma de executá-lo. Assim, a despeito das resistências individuais ou coletivas, cada vez mais o sexo anal tem deixado de ser asqueroso para ser normal. E, com isso, a nossa força política tem sido cada vez mais respeitável e menos transformadora.

*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.

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