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Disparatada: Sobre cachorros gays

Eu havia acabado de entrar no prédio e avistei uma jovem muito bonita com um enorme cachorro nos braços. As regras de convivência do condomínio não autorizam que os cães andem nas áreas públicas sem estar nos braços dos seus donos.

A cara do cão e de sua dona não era de bons amigos. Então, resolvi ser simpático e falei: "Que lindo! Ele está estressado?". Imaginei que ela iria responder que sim, afinal, viver em um kitnet e ter que voltar para casa depois de um passeio pela rua não deve ser nada agradável para um animal.

Ela fechou ainda mais a cara e disse-me virando a cabeça do cachorro e apontando para um pequeno laço de fita lilás que se perdia entre os pêlos escuros: "Ele não é ele, ele é ela! Eu coloco esse laço aqui para as pessoas verem… coitadinha". A frase me soou familiar porque quem já não ouviu algo parecido quando a mãe de um bebê a usa em referência a alguém que troca o sexo da criança?

Inesperadamente a garota desistiu de esperar o elevador e foi de escadas. Não tive tempo de pensar. Queria ter dito: "Ah, bom. Achei que ele fosse gay!". Mas ela já tinha fechado a porta corta fogo.

Uma marca da nossa cultura capitalista e pseudo-solidária é a humanização dos bichos, em direta relação com a desumanização das pessoas. Um bom exemplo disso é que em um dos shoppings mais caros daqui de Campinas (SP) há também um espaço de compras intitulado "o shopping do seu animal", ilustrado com um simpático cãozinho empurrando um carrinho de compras com seu filhote dentro! Qualquer semelhança com a ideia de uma maternidade ou paternidade feliz não é mera coincidência.

Aqui, não defendo que os bichos não devam ter direitos, inclusive, nesse caso, acho que o cão, digo, a cadela, deveria ter um quintal enorme só para ela. Mas, não é esse o foco da minha reflexão. Quero chamar a atenção para a o fato de que se humanizamos os bichos, entre outras coisas, dando um carrinho de compras para eles e botando um laço de fitas em suas cabeças se forem fêmeas, contribuímos para a construção de um modelo de humanidade que, em relação aos outros cães e também a milhões de pessoas, é bastante limitada/excludente, e por isso mesmo, perigosa. Afinal, nem todo mundo que tem cachorro pode ir às compras e tantas outras pessoas, mesmo não tendo um sexo feminino, vão preferir se efeminizar.

Foi nesse mesmo dia que li a notícia do assassinato do queridíssimo Lucas Fortuna Guarani Kaiowá. O nome "Guarani Kaiowá" agregado ao seu próprio nome no Facebook mostra o tamanho da sua solidariedade, a sua fome de justiça e o olhar generoso de ver muito além da nossa dita "comunidade LGBT".

A mensagem de quem cometeu o crime era absolutamente clara. Como comumente conhecemos, envolve um corpo seminu, com repetidas marcas de violência e muito sangue. Aí, não há identidade que nos diferencie. Ao encontrarmos os corpos de amigos gays ou travestis vítimas de homofobia, a mensagem é a mesma: "É assim que vamos acabar com vocês!"

O inaceitável é que a notícia da sua morte não causou a mesma comoção que já vi nas redes sociais quando quem é violentado e assassinado são cachorros igualmente indefesos. Nesses dias, pensando nisso, achei que deveria escrever sobre a experiência de humanização dos bichos para ser lido por mais pessoas do que se escrevesse de cara sobre o fato de mais um viado ter sido morto no Brasil.

A questão aqui não é comparar pessoas com animais, mas, não sejamos ingênuos: o laço de fita da cabeça da cadela fêmea humanizada de forma feminina tem relação direta com a faca que perfurou o corpo de Lucas. Somos tão pouco criativos em relação ao reconhecimento de gêneros distintos das expectativas sociais que, até mesmo com os animais, reproduzimos o esperado e lastimamos quando alguém confunde o sexo da criatura. Afinal, como disse o pai de Lucas, o Sr. Avelino Pardal, "A culpa da morte do meu filho é da sociedade que não aceita as diferenças".

Mas, como nos ensinou Lucas, numa sociedade que não aceita as diferenças, temos que ser cada vez mais diversos, estanhos, esquisitos. Não podemos perder qualquer oportunidade. Essa é a nossa "arma" contra a homofobia: mostrar que não somos bichos e podemos criar novas formas de ser no mundo. Lucas, com aquele sorriso emblemático costuma aparecer de saia durante encontros e protestos do movimento social. Era o seu jeito de enfrentar o preconceito.

Sabendo disso, foi vestindo saias que os membros homens do Grupo Colcha de Retalhos (UFG) (foto abaixo) homenagearam Lucas durante o seu velório na semana passada. O Sr. Avelino foi um dos primeiros a vestir a peça legitimada aqui entre nós como sendo "só de mulher".

Nós homens e mulheres que ainda sonhamos com um mundo novo, temos que ser críticos com essa humanidade padronizada de forma binária: macho/homem masculino e fêmea/mulher feminina. Nem que para isso tenhamos que reiterar a humanização dos bichos, mas ampliando as possibilidades de reconhecimentos de humanidades para categorias de gente e de animais mais criativas, estranhas e esquisitas. Temos a obrigação de sermos e fazermos de um jeito diferente do que está posto, se, de fato, quisermos continuar sobrevivendo.

*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade – Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.

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