Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal – equivalente brasileiro à Suprema Corte dos Estados Unidos – se manifestou no sentido de que há repercussão geral em recurso extraordinário a respeito da mudança de nome e sexo de transexual.
Isso significa que a Corte analisará o recurso, pois o que está em jogo é algo muito importante para a sociedade, que é do interesse de outras pessoas e não apenas um problema individual.
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O recurso extraordinário de número 670.422 teve origem no Rio Grande do Sul, onde uma transexual havia ingressado com ação na Justiça para mudar de nome e sexo, tendo obtido apenas a mudança de nome pois, de acordo com o juiz do caso, para mudar de sexo ela teria que se submeter à cirurgia de transgenitalização.
No recurso para o Tribunal estadual gaúcho, a sentença de primeiro grau foi mantida sob o fundamento de que transexuais, ainda que com a cirurgia, não são mulheres, motivo pelo qual foi determinado que na certidão de nascimento da autora constasse "transexual".
As decisões de primeira e segunda instância estão de acordo com o posicionamento da maioria dos juízes brasileiros, que às vezes até permitem a mudança de nome sem cirurgia, mas não a mudança do sexo. Isso não significa, porém, que os juízes não poderiam ter decidido diferente, de forma mais sensível e informada com a realidade vivida por travestis e transexuais, que é muito mais complexa e não se resume à realização da cirurgia.
Por isso, e inconformada com a decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul, a autora levou o processo até Brasília, para que o mesmo seja analisado pelo Supremo Tribunal Federal, que viu "repercussão geral" no recurso. E o que isso significa? Significa que a decisão dos ministros sobre o caso influenciará todas as demais ações em tramitação no Brasil que versam sobre mudança de nome e sexo de transexuais no registro civil.
Isso pode ser muito bom ou um pouco ruim. Se os ministros entenderem que a cirurgia é necessária para a mudança de sexo, isso pode ser usado pelas justiças estaduais para negar os pleitos de transexuais. Por outro lado, se os ministros entenderem que a cirurgia não é necessária para a mudança de sexo, isso confere a transexuais o direito a exigir o mesmo posicionamento dos juízes responsáveis por seus processos.
Perder o julgamento do RE 670.422 pode retardar o avanço da luta de travestis e transexuais pelo direito à identidade de gênero, mas não significa que os juízes necessariamente seguirão o entendimento do STF. Afinal, não existe uma parte contrária nos processos de mudança de nome e sexo no registro cobrando isso dos magistrados. (O Ministério Público, que é um órgão que fiscaliza o cumprimento da lei no decorrer do processo, não pode ser considerado "parte contrária".) Ganhar o RE 670.422, no entanto, daria a travestis e transexuais o direito de exigir o respeito a identidade de gênero, independente de cirurgia, e isso seria um avanço inédito.
Acredito até que há motivo para esperarmos uma decisão progressista do Supremo Tribunal, pois, nos últimos dois anos, cada vez mais têm surgido decisões extremamente favoráveis ao pleito de travestis e transexuais, mesmo que não operadas, pela mudança de nome e sexo no registro civil.
É, aliás, mais provável que o STF opte por trazer avanços nesta seara por meio de um recurso extraordinário – que não causa tanto barulho na mídia – que por meio da ADI n. 4275 – que chamaria mais atenção da mídia.
Desde 2011, com o reconhecimento das uniões estáveis homossexuais, o Tribunal tem estado sob fortes críticas de muitos setores da sociedade (até de alguns progressistas) pelo que seria um suposto "excesso" de intromissão em questões que deveriam ser decididas pelo Congresso Nacional, como a descriminalização do aborto. Por isso, os ministros talvez optem por garantir o direito à identidade de gênero de forma mais discreta e paulatina. Quem sabe, o julgamento do RE 670.422 prepare o terreno para um futuro julgamento favorável da ADI 4275.
Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também fundou e atualmente coordena o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP; e escreve quinzenalmente sobre Direitos nos portais A Capa e Gay Brasil. www.rosancoimbra.com.br/direitolgbt