Com a intensa movimentação política nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros na semana passada, importantes avanços para a pauta LGBT passaram quase desapercebido aos olhos de muita gente. Mesmo quem soube das novidades não teve tempo de sequer entender ou absorver o significado dos novos direitos garantidos à nossa comunidade.
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Serei mais específico. Na quinta-feira passada, foram publicadas as resoluções de n. 11 e 12 do Conselho Nacional de Combate a Discriminação de LGBT. Antes de detalhar o conteúdo dessas normativas e as perspectivas por elas abertas, é importante entender um pouco mais sobre o CNDC/LGBT.
Criado pelo Decreto presidencial n. 7388, em dezembro de 2010 e, portanto, ao final do segundo mandato do presidente Lula, o CNDC/LGBT faz parte da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e é composto por 30 integrantes, metade dos quais são membros do governo federal, sendo a outra metade composta por membros da sociedade civil.
O CNCD/LGBT atua na formulação e proposição de políticas públicas que garantam a cidadania LGBT. E com isso em mente foram publicadas no Diário Oficial da União referidas resoluções. Mas, afinal, de que tratam? Vamos analisar cada uma delas.
A Resolução n. 11/2015 determina parâmetros para que passem a constar nos boletins de ocorrência de todo o país campos para orientação sexual, identidade de gênero e nome social (no caso de travestis, transexuais e outros transgêneros). Isso porque o CNCD/LGBT quer dar visibilidade aos casos de violência homofóbica e transfóbica, que têm crescido ano após ano de acordo com o Relatório de Violência Homofóbica também da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.
Como a presidenta Dilma se comprometeu com a criminalização da homofobia em seu segundo mandato, é muito provável que a Resolução CNCD/LGBT n. 11/2015 venha com o objetivo de, ademais, preparar caminho para essa mudança legislativa, de modo que as autoridades policiais já estejam preparadas ou acostumadas com as novidades que virão quando da efetiva criminalização de tais crimes.
Além disso, é possível que referida resolução reforce a mensagem de que violência por orientação sexual e identidade de gênero deve ser levada a sério, cultivando, com isso, uma cultura tolerante.
A Resolução n. 12/2015, por sua vez, determina medidas para garantir o igual direito de travestis e transexuais ao acesso e permanência em espaços de ensino e outros. Dentre as medidas, destaco:
Logo nos dois primeiros artigos, fica determinado que o nome social deve ser adotado e respeito em todas as instituições e redes de ensino, inclusive para tratamento oral, o que se fará mediante solicitação da pessoa interessada, não cabendo nenhum tipo de desculpa para desrespeitar esse pedido.
Não apenas travestis e transexuais deverão ter seu nome social respeitado verbalmente, como em formulários e sistemas internos relativos a processo seletivo, matrícula, livro de frequência, avaliações e registros afins.
Até mesmo diplomas ou documentos externos (como atestados e transferências) deverão fazer constar o nome social, que deverá ocupar espaço igual ou maior que o nome civil, para evitar o constrangimento da pessoa interessada. Neste ponto, foi usado o termo "recomenda-se", ao invés de "deve", o que talvez resulte em futura resistência das instituições de ensino, mas nada que possamos afirmar com muita certeza até que as medidas comecem a ser adotadas.
Mais adiante, a Resolução volta a determinar o "dever" de se garantir o respeito a identidade de gênero da pessoa em relação ao uso do banheiro e do uniforme escolar. Quer dizer, a pessoa travesti ou trans usará o sanitário e o uniforme masculino ou feminino, caso haja tal separação, de acordo com sua identidade.
Por fim, a Resolução CNCD/LGBT n. 12/2015 determina que o respeito à identidade de gênero não deve estar condicionada à anuência dos pais ou responsáveis pelo adolescente, o que denota extrema sensibilidade em relação à autonomia e à formação da pessoa, até levando-se em consideração o fato de que a grande maioria das família de travestis e transexuais as rejeita, as expulsa de casa e não permite o livre desenvolvimento de suas identidades.
Minha impressão sobre as novas resoluções, pode-se perceber, é bastante positiva. Elas jogam luz sobre questões extremamente caras para o movimento social LGBT, que são as relacionadas a segurança pública, bem como ao acesso e permanência no ensino.
Com tais medidas, o governo federal passa a enfrentar de frente uma das causas da grande evasão escolar de travestis e transexuais, que é o ambiente hostil em escolas. Para quem não sabe, é muito comum ouvir relatos de TTs impedidas de usar o banheiro durante as várias horas que passavam no colégio, relatos de TTs que foram ridicularizadas e mesmo apedrejadas na saída do colégio, sem qualquer amparo familiar, social ou institucional.
O governo passa também a tratar a violência por orientação sexual e identidade de gênero como política pública de segurança, de modo que em algum tempo teremos acesso a dados mais realistas e abrangentes sobre as perversas manifestações da discriminação em nossa sociedade.
Pode ate ser verdade que vivemos num momento de proliferação de normativas para o respeito ao nome social, mas isso em nada diminui o marco civilizatório representado pelas resoluções do CNCD/LGBT, que têm o potencial de mitigar dúvidas e resistências em relação ao nome social. E aqui está outra coisa nada incomum no ambiente de ensino e de trabalho, em que empregadores, professores e colegas de pessoas trans insistem em desrespeitar suas identidades de gênero. Sem dúvida, estamos diante de um marco legal só superável pela eventual aprovação, no Congresso Nacional, do PL 5002/2013, mais conhecido como Projeto de Lei João W. Nery – coisa que, apesar de poder vir a ser apoiada por Dilma, dela não depende.
Não poderia, no entanto, deixar de criticar um ponto que especificamente me incomodou, que foi a perspectiva binária assumida pelas Resolução CNCD/LGBT n. 12/2015. Por menor que possa parecer o número de pessoas não binárias, isto é, aquelas que não se identificam com gênero algum (masculino ou feminino), não me parece democrático excluirmos ou deixarmos de contemplar tais pessoais, criando uma minoria dentro de outras minorias. Me parece que seria o caso de facultar a tais pessoas o uso de banheiro neutro, coisa cada vez mais comum em países como Alemanha e Austrália, onde o terceiro gênero já é uma possibilidade legal.
Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também fundou e atualmente coordena o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP, que oferece assistência jurídica gratuita para travestis e transexuais de baixa renda na cidade de São Paulo; e trabalha no Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate a Homofobia da Prefeitura de São Paulo; e escreve quinzenalmente sobre Direitos no portal A Capa. www.rosancoimbra.com.br/direitolgbt