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Em que creem os que não creem?

Desde que iniciei aqui no A Capa, tenho vontade de escrever sobre os que não professam uma fé. Aliás, na entrevista que dei e que inaugurou este espaço, prometi e não me esqueci, que abordaria a questão da religião em suas diversas expressões, não apenas cristã.
         
"Em que creem os que não creem?", é o título de um livro publicado no Brasil pela Editora Record (2002, 156 páginas). O belo livro nasceu da troca epistolar entre dois homens: um ateu e um Príncipe da Igreja de Roma, Arcebispo Emérito de Milão: Umberto Eco e Carlo Maria Martini, respectivamente. A correspondência entre os dois homens tão diferentes em matéria de religião girou em torno de temas importantes para a humanidade como questões ecológicas (abordadas na perspectiva da possibilidade do fim do planeta), a vida humana (onde ela tem início, a eutanásia etc.), o papel dos seres humanos na Igreja (misoginia, homossexualidade, o laicato), e, por fim, a ética. Completa o livro, além deste diálogo, um "coro", formado por dois filósofos, dois jornalistas e dois homens da política. Permanece como fio condutor das reflexões o binário: fé e não fé.

O livro é uma aula eletrizante sobre a visão dos que creem e dos que não creem sobre os temas acima elencados e nos ajuda muito na compreensão que é possível uma "ponte" entre essas duas posturas na vida. Os que creem geralmente pensam que os que não creem são aquelas pessoas que, por não observarem os "dez mandamentos" ou qualquer tipo de "lei divina", são pessoas descomprometidas com a ética, a verdade, o bem comum, os valores de igualdade, fraternidade, liberdade e tudo o mais que é capaz de tornar melhor a grande tribo da humanidade.

Os que creem se esquecem da História e que as piores mazelas produzidas pelos seres humanos neste mundo: guerras, genocídios, escravidão, homofobia, exclusão, racismo etc. nasceram à sombra da torre de uma catedral ou de cabeças que liam e mal compreendiam as Escrituras Cristãs. Os que creem e são nossos contemporâneos, se esquecem que ainda é este "time" que tanto mal fez no passado, continua fazendo mal, hoje, quando corroboram com toda espécie de crendice que só escraviza o ser humano, arrancando dele o pouco do dinheiro que ele tem, vendendo-lhe promessas falsas, curas que jamais acontecerão, salvação de um inferno dantesco e medieval, portanto, inexistente.

Os que creem se esquecem que são eles que trabalham contra o pleno desenvolvimento da ciência, contra a plena cidadania de gays e lésbicas, contra laicidade do Estado (e aqui são convenientes, ora advogando a causa da laicidade do Estado quando lhes interessa como no caso do Acordo Brasil – Vaticano). Os que creem se esquecem que é o discurso deles, a partir de uma visão estrábica e pervertida das Escrituras que produz tanta mazela social, tanta crendice sem lógica, tanta coisa que só serve para atrasar ainda mais a evolução humana.

Os que não creem jamais organizaram algo como as Cruzadas. Jamais escreveram teses, defendendo a inexistência de alma nos negros. Jamais fundaram confrarias para vender mentiras, falsas curas, falsas esperanças. Jamais tomaram posse de títulos pomposos como "paipóstolo", "apóstolo", "bispa", "missionário", "pastor", "cardeal", "papa" etc. com o objetivo de, pelo importante e pomposo título, suscitar respeito no outro, até mesmo medo, usando de uma autoridade inventada para subjugar, roubar, "coisificar" pessoas. E quem falar em comunismo ou até mesmo no tal "Livro Negro do Comunismo" como prova de que os ateus já agiram como agem ainda os que creem, já digo para irem estudar melhor a História, porque nem tem cabimento!

Todavia, os que creem assim como os que não creem não são dois grupos homogêneos. Entre eles existem as exceções; poderia ser diferente tratando-se de gente? Entre os que creem existem aqueles que valorizam e andam segundo a Lei do Amor, revelada por Jesus. Tem aqueles que prezam por uma ética cristã em relação ao outro, ainda que este outro não aja como ele, não pensa como ele, não creia como ele. Entre os que creem, existem aqueles que enxergam na ciência uma importante e indispensável auxiliadora da humanidade. Existem aqueles que sabem separar religião e Estado e até militam para que seja assim, pois isso é que é o correto. Existem aqueles que lutam verdadeiramente por um mundo melhor, agindo pelo amor, este sentimento revolucionário capaz de derrubar qualquer muro que separa seres humanos.

Entre os que creem, existem os que trabalham academicamente com a Escritura Cristã, "desmitologizando-a", desconstruindo-a, a fim de jogar por terra toda e qualquer tipo de crendice que só beneficia quem ganha sacos e sacos abarrotados de dinheiro dos inocentes. Tem aqueles que enxergam os que não creem, os ateus, seus semelhantes, não opositores que devem ser combatidos.

Entre os que não creem – os ateus – existem os que sem lei de Deus algum, tem lei no coração e agem de acordo com esta para o bem comum. Tem aqueles que mesmo não crendo num Ente Divino capaz de julgá-lo e lançá-lo no tal inferno, conduzem suas vidas com honestidade, com equidade, com justiça, com domínio próprio, com alegria, temperança, humildade e todos esses valores que nós cristãos achamos que só nós que temos e que a História, bem como a vida deles, nos desmente.

Entre os que não creem existem pessoas que escrevem as mais belas poesias que a humanidade já leu (Fernando Pessoa era ateu), as mais belas músicas que a humanidade já ouviu, as mais belas pinturas e esculturas que nossos olhos contemplam. Entre os que não creem existem pessoas que nos presenteiam com os mais belos filmes que nos fazem refletir sobre nosso caminhar na terra e até mesmo a mudar o rumo dos nossos passos. Entre os ateus existem os que lutam pela "Mãe Gaia", não apenas fazendo protestos, mas trabalhando de fato pela ecologia.

Entre os que creem e os que não creem, enfim, existem aqueles como Umberto Eco e o Cardeal Martini, seres humanos que, no diálogo, mesmo mantendo sua fé ou sua falta de fé, são capazes de derrubar muros e construir esperanças, visando o bem, o desenvolvimento, a "salvação" enfim da humanidade. Eu sei que eles não são os únicos. Sei que por ai existem outros crentes e outros ateus capazes deste diálogo frutífero, dessa ação comum que só fará melhor o mundo em que vivemos. Não me importa se você que lê este texto crê ou não crê em Deus; importa-me é se você deseja viver num mundo melhor, se você quer juntar suas mãos com as mãos daqueles que já trabalham por isso e se você consegue enxergar no outro, não importando absolutamente nada, teu igual, teu semelhante. Há salvação!

**Dedico este artigo ao William Magalhães, nosso companheiro aqui no A Capa.

* Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro – uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva -, desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã. Seu e-mail é: revretamero@betelrj.com.

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