Meses antes da estreia de "Insensato Coração", que aconteceu no dia 17 de janeiro deste ano, inúmeras matérias circulavam pela internet dando conta de que a nova trama de Gilberto Braga e Ricardo Linhares teria um núcleo gay. Aos poucos, as informações foram se confirmando. Seriam seis personagens representando a diversidade, mas não em um mesmo núcleo e, sim, espalhados pela trama.
Os personagens gays que permearam o imaginário popular em pleno horário nobre foram: Rony Fragonard (Leonardo Miggiorin), Eduardo Aboim (Rodrigo Andrade), Hugo Abrantes (Marcos Damigo), Xicão Madureira (Wendell Bandelack), Araci (Cristiana Oliveira) e Gilvan (Miguel Roncato).
Trabalho de campo
Apesar do montante de personagens gays anunciados, antes de sua estreia pairava a dúvida de como seria a abordagem de tais tipos em "Insensato Coração". Quando estreou, a recepção foi mais positiva do que negativa. Visto que logo no capítulo de estreia, o personagem Rony, que fez parte da trama principal, teve uma cena ao lado de Natalie (Deborah Seco), onde os dois travaram um diálogo que daria o tom de todo o resto da história.
Ao trocarem gírias como "bee", "tá boa" e "bafo", revelou um cuidado dos autores em não fazer diálogos diferentes do cotidiano de gays, o que também mostrou que Gilberto Braga e Ricardo Linhares (com ajuda de equipe, claro) realizaram trabalho de campo e reproduziram, ao longo dos oito meses, códigos, gestos, roupas e tipos que podem ser encontrados em qualquer bar de esquina.
Os autores também revelaram grande maestria na maneira como conduziram a questão gay na trama. Na primeira fase, o único personagem a assumido foi Rony, em dado momento os telespectadores até duvidaram do surgimento de outros gays na historia. Mas, depois que o núcleo de Florianópolis foi dissipado e migrado pro Rio de Janeiro, podemos dizer que a novela foi ocupada pelos personagens LGBT.
Avanço e homofobia
A partir da segunda fase da novela entra em cena a personagem Sueli (Louise Cardoso), mãe de Eduardo, que ao longo da trama sai do armário e se envolve com o professor Hugo. A saída de armário de Edu teve um aspecto interessante ao mostrar como uma mulher aparentemente progressista e simpatizante aos gays reage ao saber que o filho é homossexual. De inicio, Sueli recuou e repudiou o filho alegando temer pela segurança do mesmo. Posteriormente, o acolheu e abraçou a causa gay.
Dona de um quiosque em Copacabana, Sueli acaba por transformar o local em point gay ao enfeitá-lo com bandeiras do arco-íris. Surge também o personagem Xicão, homossexual que vive na periferia do Rio, afeminado, mas sem ser caricato e dono de um discurso de afirmação, quase militante. E será no quiosque que, perto do fim da novela, surge o personagem Gilvan (Miguel Roncato), que morador de rua acaba sendo abrigado por Sueli e passa a trabalhar na lanchonete.
Atentos aos crescentes ataques homofóbicos ao redor do Brasil, os autores da novela abordaram a questão dos "pit boys" que se reúnem apenas para agredir homossexuais, grupo que acabou por ser representado na pele do personagem do Vinicius (Thiago Martins), que assassina o personagem Gilvan. Mais do que mostrar o limite da homofobia, Braga e Linhares retrataram o novo perfil do homofóbico: branco, classe média e estudante.
Vale também atentar para o personagem Kléber (Cassius Gabus Mendes), jornalista da velha guarda que não aceita o comportamento homossexual, mas que ao se deparar com o assassinato de Gilvan se utiliza do faro jornalístico para colocar na cadeia Vinicius e passa a rever seus conceitos. Como o próprio personagem coloca: "não gostar é uma coisa, agora, eu não quero ver ninguém ser morto por aí feito animal por conta de opção sexual (sic)".
Da margem para o centro
O grande mérito da novela "Insensato Coração" e do trato que os autores deram aos personagens gay está no fato de que, definitivamente, pelo menos nesta trama, os personagens saíram da margem e foram para o centro da história com estrutura, função e narrativa própria. Nenhum personagem, por mais rápida que fosse a passagem, não serviu apenas de apoio, mas sim para mostrar a realidade.
Muita gente se chocou com a cena em que Gilvan foi assassinado, mas Braga e Linhares foram corajosos e mostraram às famílias brasileiras que acompanham novela que a homofobia existe e mata de fato. Mas nem só de tragédia vive as personagens gays: Hugo e Edu vão finalizar a trama assinando união estável com direito a festa no quiosque de Sueli em plena praia de Copacabana.
Tá certo que a direção da rede Globo mandou esfriar e cortar várias cenas entre Hugo e Edu, o que caracteriza censura e clara pressão de setores da sociedade que não gostaram de ver aqueles sujeitos "abjetos" tão bem representados na telinha do "plim plim". O beijo gay também não veio. Mas em um momento em que o Brasil encara uma das piores fases no que diz respeito ao avanço fundamentalista social e político, não cumpriu o seu papel uma novela, que diariamente cerca de 60 milhões de pessoas consomem, ao mostrar, dentro do limite, personagens gays com tanta verossimilhança?