Hélio Arthur Reis Irigaray é doutor em Administração de Empresas pela FGV-EAESP, tendo defendido tese sobre orientação sexual e o ambiente de trabalho brasileiro. Atualmente, é professor da FGV e da PUC-Rio.
Confira abaixo a entrevista:
Liliane Rocha – Hélio, conhecemos você em sua defesa de tese de Doutorado, na qual o tema era “Diversidade
nas organizações brasileiras – estudo sobre orientação sexual e ambiente de trabalho”. Pode nos dizer por que escolheu esse tema?
Hélio – Assim como no filme Matrix, acredito que, também na Administração, podemos escolher entre a pílula azul e a vermelha. Creio que seja a hora de aprofundarmos o processo de desmistificação das empresas como entidades assépticas, neutras, onde indivíduos robotizados e pasteurizados trabalham em prol de um objetivo comum. Dentro das organizações há seres humanos que não compartilham dos mesmos gêneros, etnias, capacidades físicas e orientações sexuais. Para mim, não faz sentido pensar na Administração somente como um instrumento de otimização de lucros, até porque este modelo, como bem vemos, não deu certo. Portanto, escolhi este tema visando resgatar o aspecto humano deste campo de pesquisa.
Liliane Rocha – Como você acha que a diversidade de orientação sexual se manisfesta e é percebida pelas empresas?
Hélio – Depende das empresas, do país e do cargo que as pessoas ocupam. Por exemplo, homossexuais masculinos são muito bem aceitos em call centers, salões de beleza, centros de estética e rejeitados em setores mais tradicionais, como o mercado financeiro, por exemplo. Apesar das políticas de diversidade das empresas, persiste, em geral, no ambiente de trabalho brasileiro a discriminação de qualquer não-heterossexual. A rigor, mesmo um heterossexual que seja percebido como gay, é discriminado. Prevalece os estereótipos de que os homossexuais masculinos são frágeis, fofoqueiros, perversos e que as lésbicas sejam machudas. Pior ainda, elas sofrem discriminação de segunda ordem: por serem mulheres e por serem homossexuais. Os homossexuais se sentem discriminados, mas nem sempre os heterossexuais se percebem discriminando: a dor só é sentida por quem sente.
Liliane Rocha – Qual a relação entre respeito à Diversidade e ética no ambiente de trabalho?
Hélio – Ética? Bem, as empresas incluíram os homossexuais na pauta de discussão sobre diversidade não por uma questão de ética ou de generosidade, mas por terem percebido nos homossexuais um mercado consumidor e uma mão-de-obra qualificada. No ambiente de trabalho, um homossexual é respeitado, geralmente, quando ocupa uma posição de chefia, quando se revela a questão de classe social. A ética se trai no discurso, se fala em tolerância aos LGBT e não respeito; tolerância a qual, às vezes, é barganhada como o “pink dollar”.
Liliane Rocha – Quais são os países que discriminam a orientação sexual em leis? Quais são os mais respeitosos? E como você avalia o Brasil nesse cenário?
Hélio – A maioria destes países está localizada na África, no mundo islâmico e no Caribe. A punição vai desde multa à pena de morte. Quanto ao Brasil, há alguns avanços, mas falta reconhecer o direito de cidadania destas minorias: garantir os direitos civis: desde pensão, imposto de renda à união civil e homoparentalidade.
Liliane Rocha – Na sua apresentação mencionou que no Brasil a cada 3 dias um homossexual morre vítima de violência. Como você acha que podemos mudar essa realidade? E qual na sua opinião é o papel das empresas?
Hélio – Este dado foi apresentado pelo professor Luiz Mott [fundador do GGB – Grupo Gay da Bahia]. Acredito que parte desta violência esteja relacionada à condição social das vítimas. Pessoalmente, acredito que haja ainda muita subnotificação. Mudar? O primeiro passo é criminalizar a homofobia e, obviamente, fazer valer a lei. Cabe às empresas penalizar também a discriminação e o assédio moral lá existentes. No Brasil, esta violência é muitas vezes mascarada pelo senso de humor dos brasileiros.
Liliane Rocha – Na sua pesquisa, você constatou que existe discriminação entre os próprios gays – principalmente social. Por que você acha que isso acontece e que prejuízos esse tipo de preconceito pode gerar para esse segmento?
Hélio – Isto ocorre uma vez que a identidade de uma pessoa é construída por múltiplos elementos: idade, sexo, história de vida, cultura, nível educacional. No Brasil, a classe social é um fator identificatório muito mais forte que a orientação sexual. Não raramente, os gays não se identificam com outros gays: pobres, afeminados, feios, mal vestidos, obesos, mais velhos.
Liliane Rocha – É sabido que diversas empresas multinacionais tem um posicionamento a favor da causa gay, muito mais forte e aberto fora do Brasil. Por que você acha que isso ainda acontece?
Hélio – Como disse, a maioria apenas responde a pressões institucionais em seus países de origem; outras para garantir acesso a mercados rentáveis e, também, em função de uma mão-de-obra qualificada.
Liliane Rocha – Na mesma apresentação você disse que o preconceito existe devido à afirmação da hegemonia masculina e branca, assim sendo, negros, mulheres e gays seriam excluídos em prol dessa afirmação? Poderia explicar melhor? Como poderíamos mudar esse paradigma?
Hélio – No caso, resgatando Foucault e, especificamente, Bourdieu, o ponto de partida da análise é o que está em jogo ao se discriminar os gays: a masculinidade. Na visão androcêntrica, gay é o passivo, o que se deixa transformar em mulher; desta forma abrindo mão do capital social que a condição masculina lhe afere. Os homens brancos, heterossexuais e, de preferência mais educados e afluentes, dominam o capital econômico e social; procuram alijar as mulheres, os negros, os pobres e os gays como forma de manter este controle. Existem estratégias de sobrevivência neste mundo androcêntrico, das quais estas minorias se valem; quanto a romper com esta lógica, honestamente não sei como fazê-lo.
Liliane Rocha – Em sua opinião, quais foram as conclusões mais importantes que você chegou ao fazer esse trabalho para o segmento LGBT e para a sociedade de modo geral?
Hélio – A principal é a inexistência de uma identidade gay; existem múltiplas identidades que se refletem na dimensão social e, consequentemente, no mundo corporativo. Percebi que as minorias são podem ser vitimizadas, pois têm poder de agência para enfrentar as adversidades. No que tange às empresas, a cultura nacional se sobrepõem às culturas organizacionais, ou seja, mesmo em multinacionais suecas e francesas se observou práticas discriminatórias, em virtude da cultura machista brasileira. No limite, concluiu-se que os homo e bissexuais são discriminados em algumas funções e indústrias específicas e que algumas práticas organizacionais constrangem o desenvolvimento profissional desses indivíduos.
Liliane Rocha – Em sua opinião, o que gera no Brasil uma realidade ainda tão discriminatória com o público LGBT? Fatores históricos, sociais, culturais?
Liliane Rocha – Historicamente, a homossexualidade foi vista como pecado, crime e doença. A sociedade brasileira é, no geral, extremamente machista e usa a moral cristã para travestir sua face mais perversa. Aqui, os não-heterossexuais têm seu lado afetivo sequestrado, pois, no discurso oficial da sociedade, a homossexualidade, notadamente a masculina, está associada a práticas sexuais e à devassidão; assim ignora-se a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo se apaixonarem, construírem um lar. Neste país duas pessoas do mesmo sexo se beijarem na boca é um escândalo; caixa dois, corrupção, miséria e fome, não.
Liliane Rocha – O que você teria a dizer para os homofóbicos que estejam lendo essa matéria? Por que eles deveriam refletir seu posicionamento e ser mais tolerantes em relação às causas LGBT?
Hélio – Tolerantes não, porque acredito que como seres humanos devamos nos respeitar a despeito do gênero, opinião política, classe social ou orientação sexual. Gostem ou não, os indivíduos homo e bissexuais são cidadãos, que pagam seus impostos e, portanto, têm os mesmos direitos que qualquer outro cidadão brasileiro.
Liliane Rocha – Recentemente, tivemos um depoimento no site Diversidade Global de um rapaz que tentou doar sangue, mas ao ser questionado sobre sua homossexualidade e confirmá-la, foi impedido de doar por fazer parte de um grupo de risco. O que você teria a comentar sobre essa situação?
Hélio – É a prova de como na prática os LGBT são percebidos como devassos. O Ministério da Saúde acredita que homens casados que levam vida dupla ou que são, efetivamente, promíscuos são mais dignos e “limpos” que os gays. Pode-se acreditar num governo cujas práticas não refletem seu discurso pseudo-democrático?
Liliane Rocha – Você acha que nos últimos anos o Brasil tem se tornado mais tolerante e consciente em relação às causas LGBT ou na verdade temos criado ilhas de aceitação, por exemplo, é notório como a avenida Paulista em São Paulo tem uma grande concentração desse público…
Hélio – Como disse, a tolerância – verbo tolerar – é resultado do poder financeiro de parte do público LGBT, o qual, muitas vezes, aceita esta moeda de troca. Acho um equívoco, qualquer minoria que seja, aceitar ser tolerada. Deve-se mobilizar politicamente para ser respeitada e o primeiro passo para tal é a criminalização da homofobia.
Liliane Rocha – Para pessoas que leiam essa matéria e estejam interessadas em atuar pela causa LGBT, quais as suas recomendações? Que lugares ou organizações devem ser procurados?
Hélio – No fundo, acho que não existe uma causa LGBT, mas uma causa dos excluídos e discriminados. É o resgate de nos indignarmos com o sofrimento humano, seja ele qual for a causa. Como católico, sou muito simpático à Diversidade Católica, movimento que permite a inclusão dos LGBT na Igreja. Acredito, sinceramente, que a religiosidade seja um bom caminho para mudarmos o mundo, no sentido mais amplo.
Liliane Rocha – De alguns anos para cá tem se tornado cada vez mais comum a aparição de personagens gays nas telenovelas brasileiras. Você considera esse fator positivo à medida que ajuda a esclarecer e quebrar tabus ou negativo à medida em que tem fortalecido alguns estereótipos, não tão condizentes com a realidade?
Hélio – Por este lado sim, mas por outro, as minorias são, na maioria das vezes, retratadas de forma negativa (devassos, neuróticos) ou estereotipada. O que remete a uma outra pergunta: até que ponto os gays não aceitam barganhar tolerância pelo senso de humor? Avanço acontecerá quando tivermos um casal de gays ou lésbicas vivendo como um casal heterossexual. A questão fundamental é resgatar o fato de que independentemente da orientação sexual, somos todos humanos.
Liliane Rocha – Existe algo mais que gostaria de comentar?
Hélio – Não, apenas agradecer o espaço que vocês abrem para discussão e convidar a todos para pensarmos juntos nossas atitudes cotidianas. Enxegarmos efetivamente o próximo. Só assim poderemos construir uma sociedade mais fraterna.
E-mail para contato: a.irigaray@globo.com.
* Entrevista originalmente publicada no site Diversidade Global – www.diversidadeglobal.com.