O dia 1º de dezembro foi escolhido para ser o Dia Mundial de Combate à AIDS. O HIV começou a dar as caras para o mundo em 1981, quando os Estados Unidos viveram o surto de um até então bastante raro tipo de câncer, o sarcoma de Kaposi, e de uma misteriosa condição de saúde, caracterizada pela destruição progressiva das células de defesa do organismo.
Em pouco tempo, ficou claro que os usuários de drogas e os homossexuais adultos eram os mais atingidos pela doença – a ponto de ela ter sido chamada de GRID (imunodeficiência relacionada aos gays).
A nova doença foi rebatizada de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), e ao longo do tempo, comprovaria não ter relação com os gays.
"O Brasil tem uma epidemia de HIV e AIDS caracterizada como concentrada, o que significa que a prevalência de casos de AIDS na população brasileira como um todo é de menos de 1% – mas há alguns grupos populacionais com prevalência de casos de AIDS maior do que 5%: homens que fazem sexo com homens (HSHs), profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis", esclarece Gabriela Calazans, 42 anos, pesquisadora e coordenadora de Educação Comunitária na Unidade de Pesquisa de Vacinas Anti-HIV do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids de São Paulo e participante do projeto SampaCentro, estudo sobre comportamentos, práticas sexuais e prevalência do HIV entre homens que fazem sexo com homens e travestis nas regiões da República e Consolação, em São Paulo (veja box Estatísticas).
Em 2008 pesquisadores da Universidade do Arizona em Tucson, nos Estados Unidos, liderados pelo cientista Michael Worobey, coletaram evidências de que o HIV é, na verdade, mais antigo do que se supunha.
As duas amostras mais antigas de sangue contendo o vírus são de 1959, pertencente a um homem, e de 1960, pertencente a uma mulher, que residiram na cidade de Kinshasa, no ex-Congo Belga e atual República Democrática do Congo. Com essas duas amostras em mãos, Worobey e seu time conseguiram traçar uma árvore genealógica do HIV e concluíram que ambas se originaram de um mesmo hospedeiro humano, que teria vivido entre 1884 e 1924. Os pesquisadores até arriscaram uma data para o surgimento do HIV: 1908. As descobertas foram devidamente publicadas na revista Nature.
Os cientistas da Universidade do Arizona também conseguiram mapear a trilha do HIV. Em 2007, em um artigo na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, Worobey e cientistas internacionais verificaram que o HIV imigrou do Haiti para os Estados Unidos ainda no fim dos anos 60.
O HIV teria surgido, então, no começo do século 20 na República Democrática do Congo e se espalhou pela África Central até os anos 60. Nesse período, foi transmitido a imigrantes haitianos, que estavam no continente africano a trabalho, e levado ao Haiti por volta de 1966. Por volta de 1969, entrou nos Estados Unidos via Haiti e, de lá, começou sua expansão pelo restante do mundo.
A teoria mais aceita é que a origem do HIV seja o SIV – vírus da imunodeficiência símia -, que migrou de dois grupos de chimpanzés para os seres humanos e sofreu mutação, provavelmente pelo hábito africano de comer carne de macaco. Essas informações permitem desconstruir o argumento conservador de que a AIDS surgiu por causa do "sexo desenfreado" ou é "culpa dos homossexuais".
PORTADORES DO VÍRUS
"Não vou dizer que tenha sido fácil", conta o assistente Luís*, 33 anos, portador há quatro e já em uso dos medicamentos antirretrovirais. "Fiquei em crise por muitos e muitos meses e até assexuado. Fiquei revoltado com a vida e tinha um medo terrível dos medicamentos e de ficar barrigudo e com braços e pernas finos por causa da lipodistrofia. Com o tempo, tudo amenizou. Consegui ajuda num grupo de apoio, o GIV [Grupo de Incentivo à Vida – www.giv.org.br] e com amigos, e foi muito importante, mas é claro que preferia não estar nessa situação hoje em dia".
"A principal dificuldade no início do tratamento é o medo de ser portador de HIV devido às suas possíveis consequências: rejeição da família e dos amigos, desenvolvimento da AIDS, efeitos colaterais dos remédios, as doenças oportunistas, não conseguir um relacionamento estável, entre outros. No decorrer do tratamento, focamos a terapia nas demandas trazidas pelos pacientes relacionadas a esses itens. Cada um acha o seu caminho no sentido de conviver bem sendo portador do HIV", diz o psicólogo, terapeuta sexual e analista do comportamento João Pedrosa, 54 anos, que atende soropositivos em seu consultório.
"Minha principal dúvida era com respeito à quantidade de remédios, efeitos [colaterais] e a reação da minha família. Alguns amigos próximos sentem dificuldade com os efeitos colaterais e com a administração dos remédios, receio das pessoas saberem que eles tomam, etc.", conta o bibliotecário Marcos*, 30 anos, soropositivo há oito.
Os esquemas de Luís e Marcos comportam poucas pílulas diárias, mas há outros que incluem quatro pílulas/cápsulas ou mais, podendo chegar até 16 comprimidos ou cápsulas e até injeções em terapias de resgate – quando já houve muitas falhas terapêuticas prévias e o HIV se tornou resistente a outros medicamentos.
TRUVADA – PREVENÇÃO E COMBATE EM UMA ÚNICA PÍLULA
Essa é a proposta do Truvada, uma pílula que combina as substâncias tenofovir e emtricitabina, aprovada em 2004 para o tratamento do HIV pelo FDA (Food and Drug Administration) americano. O medicamento foi licenciado este ano pelo Ministério da Saúde aqui no Brasil, embora ainda não esteja disponível na rede pública.
A maior novidade envolvendo o Truvada, no entanto, é seu uso como estratégia para a PrEP, na qual o medicamento tem o objetivo de prevenir a doença. "A sigla PrEP significa profilaxia pré-exposição, enquanto a sigla PEP significa profilaxia pós-exposição. Ambas estão baseadas na ideia de que, caso o HIV entre no organismo, é possível bloquear a infecção através do uso de medicamentos que inibem seu ciclo de vida. Na PrEP o medicamento é usado antes da exposição ao vírus, em geral com tomadas diárias. Na PEP, o medicamento é usado até 72 horas após a exposição ao vírus", explica Vivian Iida Avelino-Silva, 31 anos, médica infectologista e pesquisadora do iPrEx – iniciativa Profilaxia Pré-Exposição.
"A PrEP é uma ferramenta adicional para proteção contra o HIV, para ser somada à camisinha", continua a infectologista. "Ela é interessante, pois a tomada do medicamento não depende do diálogo com o parceiro, não é influenciada pelo calor do momento e não tem risco de 'romper'".
Não existe, porém, vislumbre de que a PrEP estará disponível num futuro próximo no Brasil. "Até o momento, o governo não manifestou intenção de estabelecer a estratégia PrEP como medida geral, ou mesmo voltada para grupos específicos, pois está aguardando mais informações sobre o uso dessa prevenção para avaliar sua implantação. Acredito que o Brasil possui estrutura adequada para que muitas pessoas sejam beneficiadas pela PrEP no futuro, evitando novas infecções", diz a Vivian Avelino-Silva.
No entanto, como referimos, a realidade é outra nos Estados Unidos. O FDA liberou o uso do Truvada como estratégia de prevenção para gays, travestis e outros homens que fazem sexo com homens. A notícia causou certa revolta. Como assim, "hétero não pega HIV"?
Na verdade, a decisão do FDA se baseou em evidências científicas, pois foi para o público de gays e outros homens que fazem sexo com homens que o Truvada mostrou sua eficácia. "O Truvada se mostrou vantajoso, pois já existiam estudos em animais que mostravam sua eficácia, e porque é de tomada simples, uma vez ao dia, com poucos efeitos colaterais", conta a Dra. Vivian Avelino-Silva.
A TRUVADA TEM EFICÁCIA NA PREVENÇÃO DO HIV EM ATÉ 95%
Segundo a Dra. Vivian, os principais achados do estudo foram que o medicamento reduz o risco de infecção por HIV, em média, cerca de 44%, mas com eficácia de até 95% quando é tomado corretamente e níveis do medicamento são detectados no sangue, além de possuir efeitos colaterais leves, como náuseas nas primeiras semanas de uso.
Será que isso estimularia o sexo inseguro? "É importante esclarecer que quem usar PrEP não está protegido contra sífilis, gonorreia, gravidez não-planejada e outras consequências da relação desprotegida, e o uso da camisinha continua sendo recomendado", explica a Dra. Vivian.
Enquanto a PrEP não se torna realidade no Brasil, vale a pena continuar se cuidando da forma tradicional, sobretudo com práticas seguras e com uso de preservativo .
Agradecimentos à Dra. Márcia Giovanetti, responsável técnica na Gerência de Prevenção do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo pelas ações dirigidas a gays, HSHs e travestis.
* Nomes fictícios para preservar identidades