Juliana está cansada de ser perseguida por seguranças quando vai ao supermercado. Na Universidade Federal Fluminense, João viu um colega se amedrontar, tirar a mochila das costas e segurar o material no peito enquanto ele se aproximava. Já Marcia foi chamada de "macaco" e agredida por três pessoas quando ia ao trabalho.
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O racismo – ato preconceituoso contra determinadas "raças" – virou crime há 25 anos. Apesar de ser mal visto socialmente e despertar revolta em quem presencia, ainda não foi superado. Os olhares, as palavras e as brincadeiras circulam pelo cotidiano – "hoje, de maneira velada, covarde e enrustida", diz a secretária Natasha Roxy.
Reparem: Todo mundo conhece alguém racista ao mesmo tempo em que ninguém se reconhece como tal. No máximo, é uma brincadeira! "Muita gente só pensa em racismo com escravos, acorrentados… Mas esse passado está no presente de outra maneira e repercutiu a situação atual", diz a tatuadora Juliana Nadu.
E a situação é a seguinte: 71,44% dos 52.198 mortos por homicídios em 2011 foram jovens negros (Dados de Mortalidade do Ministério da Saúde ); 65% dos policiais admitem que negros e pardos são prioridades nas abordagens (Pesquisa Filtragem Racial); 55,8% da população acha que a morte de um jovem negro choca menos que a morte de um jovem branco (DataSenado).
Os dados falam somente sobre o direito de "ser e existir", sem abordar as pesquisas sobre o mercado de trabalho, a inserção em faculdades, a representatividade de negros nos ministérios e na mídia…
"PRECONCEITOS SÃO PARCEIROS DA MINHA EXISTÊNCIA"
O que é pior, o racismo ou a LGBTfobia? É óbvio que não dá para comparar preconceitos, que todos eles devem ser combatidos, mas muitas vezes eles se unem. Para o estudante de psicologia Luciano Palhano, Coordenador Nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades – IBRAT, a sua própria história é marcada pelo racismo, o machismo e a homotransfobia.
"O preconceito está na pele, na alma e em tudo o que vivo. Não como uma entidade solitária, mas no sentimento mais profundo das pessoas. Desde os detalhes de padrões de beleza, na família, na escola, na faculdade, nas tentativas de amizade e afeto, no emprego, no passeio de domingo, no elevador, nas lojas, na igreja. É um parceiro com o qual eu divido a minha existência".
Natasha, Luciano e Marcia Pantera
O ator e militante João Junior (foto topo) diz que existem novas formas de racismo. "Uma das mais perversas é alegação de que os negros são os 'maiores racistas', toda vez que evidenciamos uma prática discriminatória com base na cor da nossa pele. É perverso pois busca fazer a pessoa ficar constrangida em denunciar algo".
Juliana explica que, diante das imposições, todos são afetados pelo racismo e que ela mesma sofreu de racismo internalizado. "Todo mundo sempre nos ensina ser menos negros, a não aceitar o nosso cabelo, o nosso nariz… Até que nós precisamos assumir a nossa negritude. É como a saída do armário para os LGBT. Lembro do processo que passei para assumir o meu cabelo natural e dos olhares que comecei a receber".
Já Alessandra Ramos Makkeda afirma que é difícil colocar medidas nas dores, mas frisa que ser LGBT e negro auxilia na exclusão. "Trans negras, transformistas ou gays negros têm menos chances de exercer a sua cidadania", reflete.
NUNCA PENSEI SOFRER RACISMO DE LGBT
Embora não deva servir de munição para o contra-ataque, engana-se quem pensa que grupos discriminados necessariamente se apoiam e se defendem. Muitas vezes, a possível vítima se torna algoz – e vice-versa. A drag queen Marcia Pantera, por exemplo, chocou os leitores do A CAPA na última semana ao revelar ter sido chamada de "macaco" e ter sido agredida por dois homens gays e por uma travesti, quando ia trabalhar. Ela foi espancada e, depois, revidou as agressões.
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"A gente sempre escuta falar, mas não imagina que vai acontecer com a gente. É um absurdo qualquer um ter preconceito, mas é mais absurdo ainda quando este preconceito parte de quem também é discriminado. Me senti humilhada", diz.
A tradutora Alessandra (foto ao lado) afirma que passou por momentos de estresse quando visitou uma amiga transexual no Rio de Janeiro.
"Ela fazia brincadeiras extremamente racistas durante toda a minha permanência. Tentei ser educada, mas evidenciei o preconceito. Ela ficou tão revoltada que pegou o meu celular e jogou no chão. De maneira pedagógica, levei na esportiva, mas deixei claro a minha posição".
De acordo com João, apesar de a militância LGBT ter discursos galgados na comparação com o racismo, a empatia de LGBT com as causas raciais não é automática. "Para que um homossexual branco perceba o quão o racismo é execrável tanto quanto a homofobia é fundamental que, além de gay, ele tenha um repertório político e educacional que possibilite fazer ponte entre as discriminações".
Natasha afirma que há muitos assuntos a se resolver internamente. "Mesmo dentro do movimento LGBT as trans sofrem preconceito, pois grande parte sequer sabe o que significa identidade de gênero, orientação sexual… Tudo isso aliado ao preconceito racial só mostra o longo caminho para acabar com todos os preconceitos".
O QUE FAZER?
Diante do racismo social que afeta a todos, embora ninguém admita, uma boa solução imediata é admitir o próprio preconceito e se questionar: Onde e quando você esconde o seu racismo? Será que é coerente lutar contra a homofobia e a transfobia sem lutar contra outras opressões?
* Todas as pessoas entrevistadas dessa matéria são gays, lésbicas, mulheres transexuais e homens trans.