Se há uma cena que sintetiza toda a história de "Bem-Vindo", de Philippe Lioret, é a em que Simon (Vincent Lindon) está num café com a ex-mulher Marion (Audrey Dana) explicando porque resolveu ajudar Bilal (Fyrat Ayverdi). "Ele andou 400 quilômetros para encontrar com ela e agora quer atravessar o Canal da Mancha. Quando você foi embora nem a rua atravessei para trazer você de volta", diz o personagem.
Sem que a síntese acabe com o elemento surpresa do longa, "Bem-Vindo" conta a história de Bilal, um iraquiano do Curdistão, que chega em Calais, na França, de onde pretende partir rumo à Inglaterra. O motivo? O rapaz deseja ser jogador de futebol do Manchester United e encontrar a namorada, que vive sob os domínios de um pai machista e conservador.
O filme mostra com muita sensibilidade a dureza de ser imigrante ilegal em um país que não acolhe bem os estrangeiros. Para chegar à Inglaterra, Bilal tem dois meios. Viajar escondido num caminhão de carga ou atravessar a nado o Canal da Mancha, com águas a 10°C e mais de 50 km de extensão. Como não consegue o objetivo por meio da primeira opção, resta aprender a nadar. E é aí que Simon entra na história.
Professor de natação, o quarentão vive uma relação respeitosa e saudosista com a ex-mulher. Marion é voluntária e ajuda a distribuir comida e alimento para imigrantes necessitados. Em dado momento do filme, cobra do antigo companheiro atitude quando veem dois rapazes curdos sendo expulsos de um supermercado.
Quando Simon então decide se interessar pelo ser humano que há por trás do curdo a quem ele dá aulas a vida de ambos muda de maneira irreparável. A relação entre eles é paternal e também num dado momento de dependência. Ajudando o rapaz é como se Simon ajudasse a si a encontrar um novo sentido em sua vida após a separação e o vazio que surge em decorrência dela.
O filme aborda também a questão da xenofobia, que vem ganhando muita força nos últimos anos, vide eleição de partidos de ultradireita na Europa, em um mundo onde a única coisa realmente global é o dinheiro, além da pobreza e da homossexualidade, é claro. Cabe apontar que as moedas têm livre circulação ao passo que as pessoas não. A figura do fiscal de imigração, duro porque o trabalho exige mas sensível porque ele é humano, é um importante fio condutor para explorar esse lado da narrativa.
Nesse sentido a direção de Lioret é acertada ao questionar por meio dos dramas e dos sofrimentos humanos a rigidez de sistemas legislativos sisudos e retrógrados, como os que impedem a imigração (e aí poderíamos incluir facilmente as questões jurídicas que envolvem a homossexualidade). Mas, como nem tudo é tristeza, o filme conseguiu a proeza de iniciar um debate a fim de mudar a lei de imigração na França.
Lançado em março deste ano, na França, o filme gerou um comentário negativo do ministro de Imigração, Eric Besson. Para ela, as propostas apresentadas pelo diretor são “inaceitáveis”, por entender que cruzaram "a linha amarela”, comparando a situação dos clandestinos hoje em dia na França com a dos judeus na Ocupação. Lioret respondeu em carta aberta publicada pelo Le Monde.
"[…] A realidade, dizem, supera muitas vezes a ficção. A sua realidade, senhor Besson, contenta-se em igualar, o que já é o suficiente para ser lamentável, por confirmar, hoje em dia, em nosso país, que os simples valores humanos não são respeitados. Isso é o que senhor deveria achar ‘inaceitável'”, conclui o diretor.
Por causa do longa, o Partido Socialista francês redigiu um projeto de lei batizado de “Welcome”, título original do filme, em que propõe a supressão do “delito de solidariedade”. Tratam-se dos artigos L622-1 e L622-4 do Código de entrada e estadia de estrangeiros, que penalizam com prisão de cinco anos e multa de 30 mil euros a quem ajudar, transportar ou abrigar qualquer imigrante ilegal na França. Ferramentas estas pelas quais Simon é perseguido por ajudar Bilal.
E é aí que "Bem-Vindo" ganha mais importância e relevância. Porque fala da vontade humana de superar desafios e mudar ou alterar a realidade, seja a própria, a de um país ou a do mundo. E isso, como o filme deixa claro, pode ser feito de muitas maneiras e por muitas motivações. Por amor, por carência, saindo do armário ou atravessando a nado o Canal da Mancha.