Lésbicas que fazem, que lutam pelos direitos de toda a comunidade, mulheres que não têm medo de enfrentar o poder estabelecido para defender o direito de amar quem quiser. Na semana da I Conferência Nacional GLBT no Brasil, o Dykerama.com inaugura a série “Guerreiras”, que trará sempre entrevistas com militantes lésbicas de todo o Brasil.
Para começar, duas pioneiras do movimento: Marisa Fernandes e Yone Lindgren. A primeira está em Brasília há duas semanas, cuidando da organização da conferência. Marisa é, também, a ouvidora da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Feminista, carinhosa e linda, ela nos conta parte de sua história. Yone, por sua vez, é personalidade central na defesa das mulheres que amam mulheres. É a vice-presidente lésbica da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Carioca, inteligente e forte, ela mostra na entrevista que sabe misturar bem a boemia do Rio com a dureza da militância.
Yone Lindgren
Dykerama.com – Como você começou sua militância?
Foi em 1978, no Grupo Somos RJ. Foi de repente porque eu não me sentia discriminada em nenhum lugar, mas meus amigos passavam por momentos terríveis e isto me incomodava muito. Anos de repressão escancarada. Daí, minha chegada ao Lampião [primeiro periódico abertamente homossexual no Brasil] e a foto que foi a da primeira mulher se assumindo lésbica na mídia. Para mim, foi tudo tranqüilo, mas a familia reclamou muito e depois fui vendo muitas portas se fecharem, principalmente para emprego e trabalho. Tudo por conta da simples foto e da atuação no grupo Somos RJ.
Dykerama.com – Seu papel foi fundamental na realização da I Conferência Nacional GLBT. Como você avalia esse processo? As conferências trarão mudanças reais para os GLBTs?
Acredito que todas as pessoas que militam em nosso movimento tiveram seu papel fundamental para chegarmos até aqui. O processo demonstra que ainda há muito que fazer em muitos lugares e que as mudanças reais somente serão fato se houver mais empenho da sociedade em não repetir o que vem sendo a homofobia nos tempos. Também, sem a aprovação do PLC 122 [projeto de lei que criminaliza a homofobia no Brasil] não haverá tanta evolução, já que o ser humano em sua maioria é teimoso e só respeita o outro quando sente que mexem em seu bolso ou em sua liberdade.
Dykerama.com – Especificamente para as lésbicas, o que podemos esperar da Conferência?
As propostas têm que sair com detalhes de nosso gênero e coerentes com nossas necessidades. Muita gente esquece que nós, lésbicas /mulheres homoafetivas somos mulheres em nossa essência e que isso demonstra todas as necessidades de qualquer mulher e de qualquer ser humano. Nem sempre o que contempla os demais segmentos nos contempla… Há que se respeitar essas diferenças, que jamais serão divergências e sim especificidades. Também espero que desta conferência saia uma união de fato de todas as redes, pelo que nos une, e assim poderemos nos ater às lutas contra quem nos discrimina e não contra quem luta conosco.
Dykerama.com – No manifesto das mulheres da ABGLT estão reunidas representantes de vários grupos espalhados pelo Brasil. Como foi possível obter consenso?
No II Fortalecendo, [seminário que reuniu mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais de todo o país, no último mês de abril, no Rio de Janeiro] trouxemos mulheres do Brasil todo e interagimos muito por e-mail antes do evento. Havia a proposta desde o I Fortalecendo. O coletivo, criei quando assumi a vice-presidência da ABGLT, pois era uma forma de demonstrar que somente com todas as mulheres da ABGLT comigo poderia fazer um trabalho bom . E colocamos o Somos Lés [projeto de capacitação de lideranças lésbicas] na rua e tantas outras ações que trouxeram para nós o Manifesto. O consenso deste foi suado, explicado e trabalhado até que em nossa maioria tivéssemos um manifesto com a cara de todas nós!!!
Dykerama.com – Às vezes, quando escrevo sobre lésbicas, recebo críticas por ser homem. O que você pensa disso? Assuntos lésbicos deveriam ser exclusividade das mulheres que amam mulheres?
Entendo as críticas que você recebe, afinal todos os nossos espaços tem que nos dar visibilidade. Mas convivo bem com isso e, se você for mergulhar em nosso mundo e trazer isto para nós, nos dando o direito de corrigir o que não for real, acho legal. Melhor que tudo é a visibilidade de nosso espaço, rumos, ações.
Dykerama.com – Da militância, quais são as lésbicas que você mais admira?
Fica difícil citar nomes porque eu magoaria muitas outras … Tenho lidado, nesses 30 anos, com mulheres maravilhosas e guerreiras, tanto de minha faixa etária como a moçada chegando no tempo agora. Aprendo muito com todas e isto é cotidiano. O que vejo é que agora posso descansar legal, porque tem muita gente boa atuando e de todos os cantos e recantos do mundo. Os desgastes estão mais escassos e a maioria entende que não temos que nos degladiar. Se sou branca, classe média e moro em frente ao mar, isto não me desqualifica perante as demais. Esta coisa de ficar batendo em quem é da classe dominante já me desgastou muito. Teve época de eu evitar falar de profissão, de local de residência, porque era cruel ser discriminada entre minhas iguais…
Dykerama.com – E os/as não lésbicas?
Vou ser franca, admiro e respeito tantas mulheres, mas ficar apontando quem é ou quem não é lésbica…Então faz assim: admiro minha filha Janaína, que é hétero, evangélica e levanta a bandeira onde quer que esteja. Cobra o respeito a todas as pessoas e isto me faz feliz.
Dykerama.com – Em sua casa, quem é Yone? O que você gosta de fazer para se divertir? Como é sua relação com a família?
Yone é muito na dela, gosta de cinema, música, namorar. Mas a militância muitas vezes me deixa sem fazer o que eu mais gosto. Gosto de barzinho, aquela coisa do bar com violão e caipirinha. Teatro também é algo essencial para mim. Minha família era homofóbica demais, mas com tempo, com a minha filha – que é da veia – com meus netos e genro, aprenderam a cair na real… e agora me aplaudem. As mais antigas ,tipo madrinha, padrinho, pai e alguns tios sempre me deram a maior força e nunca discriminaram.. Quando cito família, falo de minha irmã. Moramos juntas e o problema maior eram ela e mamãe. Já meu cunhado é meu maior amigo,irmão mesmo. Agora sou apaixonada pelo Igor José, meu proprietário canino!!!
Dykerama.com – Como é a vida lésbica no Rio? Refiro-me tanto à militância quanto à sociabilidade.
A militância especifica tem sua representatividade e muito trabalho. Quase sempre acordamos com os grupos mix e isto nos traz novas lideranças muito incríveis. Desde o ano passado, conseguimos colocar na parada o carro das mulheres e isso foi um grande passo…Este ano? Aguarde as surpresas de nosso trabalho. A vida social é muito fraca, poucos bares de fácil acesso, e falo inclusive de custos…
Dykerama.com – Para terminar, eleja uma – e somente uma – mulher para levar a uma ilha deserta.
Minha madrinha Dinda, que tudo me ensinou de vida,de respeito e de gente!!!
Marisa Fernandes
Dykerama.com – Como você começou sua militância?
Em 1978 em São Paulo, quando era estudante de História na Universidade de /são Paulo e aconteceu um debate cujo tema era homossexualidade, tendo na mesa integrantes do Grupo SOMOS grupo de afirmação homossexual. No término daquele debate, dirigi-me à mesa e disse: “quero entrar para esse grupo”, isso foi numa quinta-feira e a próxima reunião do grupo era no sábado seguinte, eu fui com minha namorada da época e até hoje sou ativista para a conquista de direitos para a população LGBTT brasileira. Quando me descobri lésbica, aos 13/14 anos, quatro décadas atrás, sofri toda sorte de injustiças e violências, desde aquele momento sabia que eu tinha que lutar para que pessoas como eu não fossem injustiçadas, mas vivíamos numa ditadura militar e as formas de organização da sociedade civil eram proibidas, tudo acontecia na clandestinidade. Demorou ainda uma década para que o primeiro grupo organizado surgisse.
Dykerama.com – Nesses 30 anos de caminhada, o que de fato mudou?
Muita coisa em termos de organização do movimento e com ele, os seus eventos. Há hj no Brasil, pelo menos um grupo organizado em cada Estado. Surgiram as redes e associações que congregam muitos grupos. Há redes específicas de lésbicas, de travesits, de pessoas transexuais, de LGBTT afro-descendentes e uma só de gays. Ao longo desses 30 anos ocorrem Encotros Nacionais, o EBGLT, as lésbicas realizam os SENALE Seminário Nacional de Lésbicas, Caminhadas Lésbicas em várias cidades, as Paradas do Orgulho LGBT, surgiram publicações específicas, mostra de filmes e nesse ano de 2008 realizaremos a I Conferência Nacional GLBT com 600 delegad@s, 300 observadores e 100 convidados. As novelas brasileiras apresentam personagens gays e lésbicas de maneira digna e não mais caricatos. Há vários municípios com legislação que promove a cidadania dessa população. A homossexualidade foi retirada do código de doenças, em Brasília temos uma Frente Parlamentar, com mais de 200 deputados/as federais comprometidos com o combate a homofobia e a promoção da cidadania LGBTT. O atual governo lançou um Programa de Ações, o Brasil Sem Homofobia que é um avanço importante, envolvendo 11 ministérios e recursos públicos na promoção da cidadania e combate à homofobia.
Dykerama.com – E o que continua emperrado?
As mudanças são inúmeras mas de fato, não contamos ainda hoje com uma única lei, com um marco legal que verdadeiramente nos torna cidadãos, nos dê proteção legal e criminalize a homofobia. Isso é lamentável. A ausência de uma legislação que combata a homofobia e promova a cidadania é a principal dificuldade que a população LGBTT encontra. Nas relações internas do movimento, o que emperra, é o machismo, o sexismo, a misoginia e uma profunda disputa pelo poder que gera desarticulação.
Dykerama.com – Em sua opinião, o que há de melhor no movimento GLBT, em especial entre as lésbicas?
A determinação de abrir espaços dentro das esferas governamentais, isso é incrível. Para as lésbicas, o que há de melhor é a determinação de ocupar espaços de poder dentro do movimento LGBTT, enfrentando o machismo.
Dykerama.com – E de pior?
Sempre a cega e irracional disputa de poder.
Dykerama.com – Seu papel foi fundamental na realização da I Conferência Nacional GLBT. Como você avalia esse processo? As conferências trarão mudanças reais para os GLBTs?
Não, meu papel não foi fundamental na realização dessa I Conferência. O papel de todos e todas representantes da sociedade civil e do governo, foi fundamental. O processo foi muito legal pois a comissão organzidora foi composta tanto por governo quanto por sociedade civil. É uma conferencia chamada pelo governo e patrocinada por ele, mas foi organizada conjuntamente, não foi feita pelo governo, mas com o governo. Cada processo prático e conceitual foi construído coletivamente. Estou otimista em relação aos resultados das conferências. Creio que elas efetivarão algumas políticas públicas tais como a implantação de coordenadorias municipais e estaduais e uma sub-secretaria federal. Acredito que a nacional pressionará de maneira significativa a aprovação do Projeto de Lei que Criminaliza a Homofobia.
Dykerama.com – Especificamente para as lésbicas, o que podemos esperar da Conferência?
Melhor articulação das redes de lésbicas, melhor inserção das lésbicas nas secretarias especiais e nos Ministérios. Acredito que a organização das lésbicas e elas próprias individualmente serão as maiores ganhadoras desse processo.
Dykerama.com – No manifesto das mulheres da ABGLT estão reunidas representantes de vários grupos espalhados pelo Brasil. Como foi possível obter consenso?
A criação do Coletivo de Mulheres Feministas da ABGLT é um processo que vinha amadurecendo há dois anos. Durante esse período aconteceu o VI SENALE [Seminário Nacional de Lésbicas], o projeto SOMOSLÉS, II Fortalecendo (seminários de capacitação) e um Seminário de Lésbicas Negras. Esses eventos foram fundamentais para o amadurecimento da consciência e da necessidade de ter uma organização forte de mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais que por meio do feminismo, desenvolvesse uma politica de enfrentamento do machismo e do sexismo dentro do movimento LGBTT. A realização de um bom planejamento estratégico e de um forte eixo político foi capaz de trazer o consenso entre as distintas experiências sejam regionais, de raça e etnia, geracional, de classe, de orientação sexual e identidade de gênero.
Dykerama.com – Às vezes, quando escrevo sobre lésbicas, recebo críticas por ser homem. O que você pensa disso? Assuntos lésbicos deveriam ser exclusividade das mulheres que amam mulheres?
Mulheres que amam mulheres podem ser relações entre mães e filhas que amam umas às outras. A lesbianidade é uma postura política, somos mulheres que desejamos sexualmente a outras mulheres e também nutrimos relações afetivas. É política porque rompemos com a heteronormatividade e sobretudo com o patriarcado que coloca a mulher em um determinado espaço – o de ser complementar ao homem e nunca como sujeitos de nossa própria história. Por ter sido negado às mulheres de forma geral, a oportunidade de escreverem sua própria história, por termos sido silenciadas e descritas pelo olhar masculino, para nós é muito importante que tenhamos voz, que nos descrevamos. Isso não impede que homens escrevam sobre nós, mas é politicamente correto e uma dívida histórica dos homens para com as mulheres, garantir-nos nossos próprios espaços, nossos termos, nosso olhares e discrição de nossas vivências, tão específicas.
Dykerama.com – Da militância, quais são as lésbicas que você mais admira? Por quê?
As inteligentes, as coerentes, as feministas, as determinadas, as sábias, as de bom senso, as pacifistas, porque com essas dá para compor, construir, avançar, conquistar políticas públicas e legislações favoráveis para todas as mulheres.
Dykerama.com – E os/as não lésbicas?
As mulheres feministas.
Dykerama.com – Em sua casa, quem é Marisa Fernandes? O que você gosta de fazer para se divertir? Como é sua relação com a família?
A Marisa Fernandes é uma gateira, uma mulher que ama os gatos principalmente e os bichos de uma maneira geral. Tenho e cuido de muitas plantas, faço faxina, lavo, penduro, recolho, dobro e guarda roupas. Toco um dobrado danado para ganhar algum dinheiro e sobreviver. Sou muito brincalhona, mas isso só os/as mais íntimos conhecem. Sou extremamente dedicada à minha família, tenho uma mãe de 85 anos de idade, irmãs, sobrinhas/os, e sobrinhos/as netos, portanto de 85 anos a 4 meses, tem de um tudo e a todos e todas amo profundamente e cuido como se todos e todas fossem só meus. Sou macumbeira, equedi, no candomblé e por isso cuido. Divirto-me namorando, adooooro!
Dykerama.com – Dos espaços de sociabilidade para lésbicas que já houve ou há em São Paulo, quais você considera mais importantes?
O Ferro´s Bar fez História por mais de 30 anos. Acho a história daquele lugar incrível. A boate Moustache foi o máximo, nada foi igual à Moustache, loucura. O Farol Vila Madalena está fazendo história também, a Cida é guerreira e tem mantido aquele espaço de forma fantástica. Outro lugar, embora eventual, é a realização do Festival de Cinema do Mix Brasil. Gosto de lugares chiques, com gente culta e elegante, São Paulo ainda deve esse espaço para as lésbicas.
Dykerama.com – Para terminar, eleja uma – e somente uma – mulher para levar a uma ilha deserta.
Inteligente, culta, experiente, bonita, gostosa, sacana. Tá bom, né? Se você conhecer ela e indicar a ilha mais deserta, juro que me mudo prá lá e abandono a militância.
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