Recebi neste dias um e-mail de um amigo que anunciava que Gleice, uma conhecida travesti fora barbaramente assassinada na Via Dutra, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, nestes dias de novembro do corrente ano. O fato merece muitos de nossos questionamentos, pois coloca-nos diante da civilidade, do direito e da cidadania.
Destaca-se que é estarrecedor o que vem acontecendo no Brasil contra homossexuais no que tange a assassinato, violência e discriminação diária. Ao falarmos em violência podemos nos referir à prática da barbárie tais como: latrocínio, execução, morte suspeita, assassinato qualificado. Isso sem levar em conta outros tipos de violência com a mesma crueldade tal qual a psicológica e contra a honra. Além disso, o tratamento dado às vítimas é outra face da violência sem estatísticas e sem visibilidade.
A violência contra homossexuais de modo geral, para vários pesquisadores e ativistas, coloca o Brasil como campeão mundial de assassinatos. A reação contra a violência homofóbica vem ocupando cada vez mais o centro das preocupações do movimento homossexual organizado. Fato que não se observa por parte dos poderes públicos brasileiros, apesar de em alguns Estados a questão já se estabelecer como política pública de segurança voltada a enfrentar o problema.
Há que se considerar que os dados relativos aos fatos estão limitados a notícias coletadas junto à grande imprensa. Mesmo neste contexto, as pesquisas demonstram que há uma intolerância fascista generalizada na sociedade brasileira em torno dos gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros.
A situação é grave e se constitui como um desafio para as políticas sociais e culturais, em todos os âmbitos da sociedade civil. E é preciso agir rápido a fim de se reconhecer as diferenças e corrigir as desigualdades. Contextualizo esta reflexão apontando para o fato de que o não reconhecimento social e jurídico das relações amorosas e eróticas dos homossexuais na vida brasileira favorece a legitimidade da intolerância. Essa questão é emblemática para se pensar o tema cidadania e sexualidade, pois aponta uma nova dinâmica política de setores organizados da sociedade, que reivindicam e demandam necessidade de liberdade e cuja agenda política aponta algumas especificidades, tais como: o direito civil da união “homo-afetiva”; novas possibilidades de organização familiar; necessidade do direito a adoção; livre manifestação das relações homoeróticas nos espaços públicos.
Numa perspectiva sócio-cultural há que se constatar uma interdição alicerçada na defesa da conjugalidade, da parentalidade e da construção das relações afetivas como possibilidade única no universo heterossexual. Destaca-se que o ideal de igualdade e liberdade nos quais se pauta a cultura moderna pouco importa com isso, mas vale ressaltar que o crescimento de tensões da vida social está incorporando na cultura as perguntas sobre as diferenças sexuais. As respostas passam por exigências de novos horizontes para a liberdade e igualdade e “diferença”. O debate inclui veementemente o respeito à livre manifestação homo-afetiva, que deve ser discutida nas escolas, refletidas pelas religiões, consideradas pelas famílias e reconhecidas pelo Estado a partir do que já está referendado pela Constituição. Na Carta Magna já está colocado os preceitos fundamentais de que: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)
A questão da violência aponta para raízes na difusão do debate que articula o comportamento heterossexual como norma. É comum observar que as instituições igreja, escola, família e Estado pouco fazem para garantir o direito a “diferença” e considerarem a possibilidade da diversidade nos desejos e comportamentos sexuais.
A intolerância sexual não pode ser praticada como algo natural em uma sociedade que se diz civilizada. Portanto, o debate contra o preconceito e a dencúncia contra a prática fascista em relação a livre manifestação da homossexualidade tem que ser um enfrentamento firme, sem tregua e deve partir das mesmas instituições que tanto defende a heterossexualidade como “norma” – a igreja, a família, a escola e o Estado.
Homofobia tem cura? Só se abarcamos uma ampla reflexão educacional, que possibilite aceitação da diferença. Para isso além de punir o indivíduo agressor, temos que desconstruir o aparato ideológico da normatividade heterossexual. Neste sentido, as lutas do movimento gay trazem conseqüências políticas importantes para a garantia de igualdade formal de direitos e deveres entre cidadãos legítimos.
Vale destacar que a luta contra a violência em relação aos gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros, traz nas entrelinhas novas lutas e debates. O que mais chama a atenção é aquele no qual a conjugalidade familiar deixa de ter a função de garantir a reprodução da espécie humana. Enfim, delineia-se o fato de a sexualidade não representar tão somente aquilo que permita a reprodução dos indivíduos, pois como bem afirma Foucault (1984), “o sexo sempre foi o núcleo onde se aloja juntamente com o devir de nossa espécie, nossa “verdade” de sujeito humano.”
Que Gleice viva!