“Eu gosto é de sapatão, de mulher já basta eu!” é a frase que abre o documentário “Singularidades”, filmado pelo projeto Olho Vivo, coordenado pelo cineasta Luciano Coelho e realizado por 12 alunos. O trabalho dividiu o prêmio de melhor filme com a ficção “Bárbara” (MG) que retrata um ajuste de contas entre o pai e uma travesti. Os filmes participaram do II For Rainbow – Festival de Cinema da Diversidade Sexual, realizado na cidade de Fortaleza (CE) entre os dias 5 e 9 de setembro.
Com a declarada ambição de se tornar o maior do Brasil, a programação trazia 57 longas e/ou curtas que abordavam o amor entre mulheres. “Dizeres Íntimos” (SP), “Desejos Iguais” (CE), “Páginas de Menina” (SP) e “Singularidades” (PR) estavam incluídos na mostra competitiva. O canadense “Melhor que Chocolate” (Mostra Internacional) e os selecionados para compor o programa “Eu gosto é de mulher – Femina”, que contava com “Lupine” (Suécia/ Alemanha), “Os Inocentes Letais” (Nova Zelândia), “Flores no Parque” (Espanha), “Amor e Palavras” (França) e “No Fim da Rua” (Polônia) completavam a programação feminina.
Justamente o único programa destinado às mulheres teve alteração de horário e acabou prejudicando os casais de jovens meninas, que chegavam para ver a sessão, que a princípio seria realizada na segunda-feira (8), às 17h – eu estava entre as pessoas que não conseguiram ver o programa. No lugar o festival exibiu um filme que abordava a questão da Aids. Frustração geral entre as garotas, que em protesto abandonaram a sessão.
“Nossa representação é bem pequena. Ainda é um problema de gênero. A mulher sempre fica em segundo plano. Quando pensamos nos movimentos contra as minorias pensamos nos gays, depois nas travestis e por último vem o das mulheres”, comentou Cecília Góis, uma das diretoras do cearense “Desejos Iguais”, que acabou ofuscado no debate que foi feito com os realizadores.
O filme de Cecília, em parceria com Gaby Lima, é um singelo retrato sobre o amor entre duas mulheres. Uma das cenas mostra as protagonistas “dançando” a relação. Em vez de retratar beijos, seios e corpos desnudos, as diretoras preferiram a metáfora. Uma acertada escolha para um filme sem pretensões, feito com recursos das próprias realizadoras. Segundo Gaby, “o filme ilustra um espaço por qual estamos lutando, queremos realizar outros, bem como ganharmos visibilidade mesmo sem recursos ou sermos reconhecidas”.
“Dizeres Íntimos”, de Bruno Peres e Carolina Barres, com duração de 19 minutos, mostra uma mulher frustrada com o casamento monótono e que relembra uma paixão adolescente por uma amiga de escola. Infelizmente, o filme não propôs nada de novo. Inspirado numa história real, os diretores realizaram o filme como trabalho final de um exercício de faculdade.
Entre os premiados estavam o documentário “Singularidades” (melhor filme) e a ficção “Páginas de Menina” (melhor atriz, fotografia e direção de arte). Em “Singularidades”, duas mulheres lésbicas relatam suas histórias. Áurea Célia (foto), ganha a vida imitando Clara Nunes. Seu depoimento sobre gostar de mulheres masculinizadas e não femininas arrancou aplausos do público durante a projeção. No mesmo filme, Rosangela, dona de um bar em Curitiba, narra sua história. O fato de ter adotado quatro crianças e de ter permitido que a companheira realizasse uma inseminação artificial para que pudesse ser mãe, conquistou a platéia e o prêmio de melhor filme entre os jornalistas.
O destaque ficou por conta do polêmico “Filthy”, realizado em Porto Alegre pelo Queer Fiction. Experimental, o filme questiona quais os reais prazeres da carne e traz cenas de violência, escatologia e sexo explícito entre duas meninas. Apenas de meias 3×4 listradas e de ursinho, duas meninas praticam sexo durante 17 minutos. O filme causou frisson e dividiu o público presente no histórico Cine São Luis, atual Centro Cultural Sesc Luiz Severiano.
Gritos de revolta, pessoas levantando, palavras debochadas eram proferidas no escuro enquanto a câmera mostrava uma das meninas praticando sexo oral na outra. “Nossa intenção foi sabotar, subverter qualquer padrão moral e estético. O sexo nada mais é do que dois pedaços de carne que ficam se fundindo”, ressaltou Bárbara, uma das atrizes, em debate na manhã seguinte à exibição do curta.
Uma das pessoas que se incomodou com o vídeo protagonizado por Bárbara foi a atriz Lúcia Veríssimo, que compunha o júri de cinco pessoas, que premiaria o melhor filme com R$ 5 mil. Lúcia se recusou a tirar uma foto com a gaúcha. “Quisemos com o vídeo ressaltar as diversas formas de desejos marginais que habitam a pessoa. Queríamos falar sobre as formas alternativas de expressão do desejo”, afirmava a “atriz” em meio ao bombardeio de perguntas – por vezes fúteis – dos presentes ao debate.
“Filthy” teria tido seu espaço se houvesse uma melhor definição na categoria de premiação. Trata-se de um filme experimental, feito para provocar e incomodar. Obviamente não seria premiado já que competia com filmes mais convencionais e de melhor acabamento estético.
“Páginas de Menina” é o exemplo. A película de Mônica Palazzo se passa numa cidade do interior de São Paulo nos anos 50. Protagonizado por Vera Zimmermann e Tieza Tissi (melhor atriz), o filme narra o encontro de duas funcionárias de uma livraria. Com belo acabamento estético, o filme, assim como “Dizeres Íntimos”, não traz em seu roteiro nenhuma novidade – em ambos o amor não foi concretizado, por exemplo.
A presença feminina no evento foi mínima. Estava reduzida ao grupo de Cecilia e Gaby – ambas fazem parte de um grupo chamado Superação, um dos cinco grupos cearenses que atuam em favor das mulheres lésbicas.
Num evento com presença ainda modesta do público, a visibilidade lésbica ficou apagada. Porém as “personagens” retratadas na telona, como Rosangela, Áurea e – por que não – o alter ego de Bárbara, fizeram a diferença e representaram contundentemente as mulheres que amam mulheres.