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Imaginação versus vivência

Em julho, algumas autoras da Editora Malagueta e eu fizemos a 1ª Conversa Lésbica Literária de Paraty durante a OFF FLIP. Foi interessante, com participação acalorada de várias moças e uma discussão que se estendeu por boas duas horas.

Um dos temas levantados, e que aliás sempre surge quando se fala de literatura lésbica, é se uma pessoa com sensibilidade e imaginação tem condições de escrever um texto de temática lésbica – um homem como o Chico Buarque ou uma mulher hétero bem informada – ou se é preciso ser uma lésbica para tanto.

Essa discussão tem defensores fortes de ambos os lados. Há uma nobre tradição que diz que a literatura não é documentária mas arte, e que para fazer arte a pessoa precisa ter sensibilidade e usar sua riqueza interior. Não precisa, assim, ter experimentado na pele tudo o que descreve.

A outra ala desse embate costuma dizer que sim, é verdade que uma escritora não precisa ter vivido tudo o que coloca nas suas histórias (senão não existiria a ficção científica, por exemplo), mas pelo menos a essência ela necessita ter experimentado na sua alma, ou sua literatura soará falsa.

É uma boa discussão. Uma das presentes argumentou que Kafka nunca virou uma barata gigante para escrever A metamorfose. Outra rebateu que ninguém virou uma barata gigante para saber se a descrição de Kafka é boa ou falsa…

Apesar de achar a troca de ideias uma delícia, eu tenho uma posição definida a respeito: literatura lésbica precisa ser escrita por lésbicas. Como argumento, eu vou apresentar aqui nosso lançamento mais recente, o livro “Amores cruzados”, de Fátima Mesquita.

Eu conheço a Fátima faz já mais de dez anos, fui eu que publiquei seu primeiro livro – “Julieta e Julieta” – pelas Edições GLS. Essa obra foi um marco por ter sido publicada sem pseudônimo e conter as primeiras histórias em língua portuguesa com protagonistas lésbicas e finais felizes. Sério, até 1999 só tinha personagem lésbica suicida ou solitária ou alcoólica. Desde então a autora lançou mais seis títulos diferentes, dirigidos a outros públicos, e só agora voltou a escrever para lésbicas.

“Amores cruzados” é uma história que eu achei deliciosa, com aquele ritmo e oralidade de que a Fátima é mestra. Ela é mineira, contadora de causos e tem uma prática em textos para rádio e televisão enorme. Daí que seus diálogos são perfeitos, dá para ouvir as personagens falando com total naturalidade, o livro acaba antes da hora de tão prazerosos são os trinta dias em que acompanhamos Carolina em andanças variadas.

Mas não é só isso. O casamento entre as duas mulheres ressoa de tão verdadeiro. Quem já viveu uma relação longa com outra mulher com toda certeza vai reconhecer muitos de seus sentimentos ali, a rotina, o encaixe perfeito, as esquisitices. E as traições, as brigas, o perdão, aquela dúvida que a umas tantas bate sobre a relação.

Nada disso é exclusivo de lésbicas, claro, mas nós temos um jeito um pouco diferente de passar por esses altos e baixos dos relacionamentos. O meu argumento sobre o debate acima então é esse texto. Para mim, apenas uma lésbica poderia ter escrito algo tão caracteristicamente nosso. É óbvio que ela não imaginou, mas viveu com outra mulher. E não uma noite apenas, mas muitos anos de trocas e acertos. E não escondida, mas assumida e resolvida.

Tudo isso passa através dos poros da história simpática e cheia de pequenos enigmas sobre Carolina, Gisa e uma admiradora secreta. E só passa porque é verdadeiro. Na minha opinião, nem em um milhão de anos um homem ou uma mulher hétero escreveria algo como “Amores cruzados”.

Esteja à vontade para discordar, mas leia e veja se eu não estou falando a verdade…

Serviço:
Amores cruzados
Fátima Mesquita
168 páginas
R$ 25,00
Editora Malagueta
www.editoramalagueta.com.br


* Laura Bacellar é escritora e editora de livros, atualmente responsável pela primeira editora lésbica da América Latina, a Malagueta – www.editoramalagueta.com.br.

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