Na última segunda-feira, 01 de agosto, Ney Matogrosso completou 70 anos de idade. São sete décadas de uma vida marcada pela ousadia, independência, autenticidade e personalidade, sobrevivendo em um país com fama de liberal, mas que cada vez mais mostra sua face conservadora.
Nascido Ney de Souza Pereira em Bela Vista, no estado de Mato Grosso do Sul, filho de pai militar, Ney morou em diversos locais na infância e adolescência, como Rio e Campo Grande. Já na década de 60, vivendo em Brasília, ele experimentou diversas profissões, até decidir ser ator, embarcando de vez para o Rio de Janeiro.
Na capital carioca, a partir de 1966, Ney buscou trabalhar no teatro, mas para sobreviver aderiu ao estilo hippie, então no auge – e ele fabricava peças de artesanato, que vendia na cidade. Foi somente em 1971, aos 30 anos, que ele iniciou oficialmente a carreira de cantor, quando ingressou no nascente grupo Secos & Molhados.
O sucesso estrondoso da banda é amplamente conhecido. O LP "Secos & Molhados", de 73, alcançou a incrível marca de 1 milhão de cópias vendidas. O grupo virou coqueluche, lotando shows em locais imensos como o Maracanãzinho. Ney Matogrosso, o vocalista, virou um superstar nacional.
Apresentando-se com visual andrógino e selvagem, que incluía penas, pedras, adereços indígenas, conchas, plumas e brilhos, salpicados com maquiagem extravagante, os integrantes da banda chocavam e fascinavam o público brasileiro, em plena ditadura militar – na fase mais pesada do regime, com a tortura e as mortes em seu pior momento.
O Secos & Molhados chegava em um período que tinha os Dzi Croquettes – grupo performático carioca que também abusava do visual andrógino – e Edy Star, representante do glam rock no Brasil. No exterior, o glam/glitter rock de David Bowie e bandas como Roxy Music e T.Rex desembocaria depois nos roqueiros do Kiss – que também maquiavam os rostos.
À frente da banda, Ney logo se destacou com sua performance impressionante nos palcos, e a incrível e agudésima voz, em registro quase feminino. A potência artística do cantor logo geraria o inevitável: ele precisava de sua própria carreira, solo. Assim, em 74, o Secos lançava seu segundo LP, na sequência o cantor abandonou a trupe.
Começava a carreira solitária de Ney, que lançou discos impecáveis nos anos 70: "Bandido" (76), "Pecado" (77), "Feitiço" (78), "Seu Tipo" (79), para citar alguns. E além da excelência nos LPs, ele continuava arrasando nos palcos, desafiando a censura e os valores conservadores da época, e atraindo para seus shows um público eclético – homens e mulheres, gays ou não, se sentiam arrebatados e seduzidos pela figura de Ney, que requebrava e provocava no palco, destruindo os limites entre masculino e feminino. Desde aquela época, é comum ouvir gritos de "Gostoso!" ou "Tesão!" na plateia de seus shows – gritos vindos de homens e mulheres, dos 20 aos 80 anos, literalmente.
Nos anos 80 ele continuou na ativa, lançando outros LPs clássicos, como "Ney Matogrosso" (81) e "Matogrosso" (82). É dessa época um de seus maiores sucessos, que falava justamente da intersecção sexual: "Homem com H".
Outros hits do cantor, entre tantos, foram "Não Existe Pecado", "Por Debaixo dos Panos", "Tanto Amar", "Manequim", "Vida Vida", "Vereda Tropical", "Viajante" – muitas delas, temas de novelas de TV. Sem falar em "Pro Dia Nascer Feliz", música de Cazuza e Roberto Frejat, que Ney transformou em hit nacional; ajudando, assim, a catapultar a carreira do Barão Vermelho e de seu vocalista, Cazuza – com quem Ney teve um rápido romance em 1979, antes de Cazuza virar cantor.
O caso entre Cazuza e Ney só ficou famoso após a morte do primeiro. A mãe de Cazuza, Lucinha Araújo, comentou o namoro em seu livro de 1997, "Só as Mães São Felizes", apesar de o tema ter sido descartado no filme "Cazuza", de 2003. Por outro lado, o romance foi mostrado no programa da Globo "Por Toda Minha Vida", na edição dedicada à Cazuza. O próprio Ney também já foi retratado em um "Por Toda Minha Vida" exclusivo.
Mas, independente do romance com Cazuza, o fato é que Ney Matogrosso nunca teve pudores em falar sobre sua sexualidade. O cantor já disse em entrevistas que na década de 70 vivia em chave bissexual, transando com homens e mulheres – ao sabor daquela época. Porém, com o tempo, foi migrando para a vida gay, apesar de também afirmar detestar rótulos.
"Eu já transei com muitas mulheres e com muitos homens. Eu acho que esse rótulo homossexual é muito recente, do final do século 19", disse o cantor em entrevista. "Homossexual, heterossexual, isso tudo é uma bobagem. É tudo sexualidade humana. Tudo isso são rótulos, é mais uma forma de manipulação, é uma palhaçada. Isso não interessa. O que importa é a liberdade de se expressar sexualmente. O ideal é que todo mundo se expresse livremente tanto com homens ou com mulheres, do jeito que bem entender. Acho que isso não deve ter nome".
Ney ainda disse: "Eu não me enquadro em nada. Sou uma pessoa muito sexualizada e manifesto a minha sexualidade da maneira que o momento permita. Sei que eu sou rotulado como homossexual. Mas são as pessoas que me rotulam assim. Eu não me rotulo dessa maneira, eu não assumo nada, não assumo que eu tenha que ser de alguma maneira só porque as pessoas acham isso sobre mim. Sou um ser humano normal, como qualquer outro". Perguntado do porquê de ser rotulado como gay, ele dispara: "Porque eu admito que transo com homens. Só por isso. Não tenho porque esconder nada".
"Eu transo com homens, sim. Mas já transei com muitas mulheres. Neste momento, não transo mais com mulher", disse ele já na década de 2000. "Inevitavelmente, a relação vira um romance. Não quero isso. Não quero me relacionar com ninguém que tenha que virar casamento. E com mulher é impossível você escapar disso. E todas elas querem casar. Até as mulheres mais loucas que eu conheci, as mais liberadas, no fundo elas queriam casar. Gosto de viver sozinho. Isso não significa que eu não possa ter um relacionamento com alguém, não possa ter pessoas com quem eu transe – mas eu não quero me casar mais, nem com homem nem com mulher. A não ser que caia um raio sobre a minha cabeça que me faça mudar de idéia. Pode acontecer!"
Em 2008, por sinal, Ney interpretou uma situação ligada a esse assunto: no curta-metragem "Depois de Tudo", de Rafael Saar, o cantor vivia um homem que mantinha um romance bissexto com outro homem, encarnado pelo ator Nildo Parente.
Ney também já disse que é um sobrevivente. Nos anos 80, antes do alarme da Aids, fez sexo com homens que já eram soropositivos, mas não contraiu o HIV. E além de toda essa lucidez e postura revolucionária sobre o assunto – sempre tabu – do sexo, e de não ter papas na língua sobre nenhum tema, incluindo as drogas, Ney desafiou outro tabu: o da terceira idade. Afinal, é espantoso que um homem de 70 anos continue requebrando no palco com uma energia invejável até para meninos de 25 anos. E com a voz intacta, após 40 anos de carreira.
E é assim mesmo: após uma fase musical em que deixou de lado o rebolado, gravou discos mais sóbrios como "Pescador de Pérolas" (86) e "À Flor da Pele" (90), além de "Um Brasileiro" (96, sobre o repertório de Chico Buarque), depois dos 60 anos Ney retomou a linha explosiva que o consagrou, e voltou com discos e shows como "Batuque" (2001), "Vagabundo" (2004) e "Inclassificáveis" (2008, onde aparecia com um figurino ousado e até arriscava momentos de nudez).
"Inclassificável" acaba sendo o melhor rótulo para Ney, já que vivemos na exigência de rótulos. Cantor, ator, diretor, iluminador, coreógrafo, o saldo que fica é de um artista transgressor, um dos mais importantes do Brasil, cujo trabalho, embora envolvendo as fronteiras sexuais, ultrapassa esse limite e torna-se muito maior. Na edição de hoje, esta coluna nem deveria ter o nome que tem e, sim, ser batizada como "Heróis do Brasil".