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Literatura lésbica

No meu trabalho com a Editora Malagueta (a primeira editora de e para lésbicas do Brasil), tenho recebido um monte de originais. Isso me deixa muito feliz, claro, porque significa que as mulheres escrevem, têm o que dizer e querem se pronunciar para o mundo. Logo, logo a gente vai lançar uns livros bem interessantes, fique atenta.

Mas algo curioso é que recebemos também originais de homens, tanto gays quanto heteros. Eles acham que, se colocarem uma personagem lésbica na história, já está valendo para que seja considerada literatura lésbica.

Eu dou risada. Um dos textos, assinado por “Bárbara”, tinha situações ótimas de teatro do absurdo com uma travesti que mora com sua mãe evangélica fanática e acaba se envolvendo amorosamente com uma mulher. Ri com a acidez característica do humor gay, mas eu nunca acreditaria que Bárbara é uma mulher.

Aí parei para pensar em por que eu tenho tanta certeza disso, por que o gênero do autor faz diferença para o texto, por que um romance sobre duas mulheres assinado por um homem não me convence.

Cheguei a algumas conclusões, que discuto aqui. Mas adoraria se você, cara leitora, comentasse o que acha, visto ser este um assunto quase virgem. Literatura lésbica é algo que, para muitos apreciadores de livros, nem existe…

Uma das características que sinto estar presente nos originais assinados por mulheres, mesmo aqueles menos elaborados, é a preocupação com as relações. Acho que nós mulheres não conseguimos imaginar uma pessoa como uma unidade completa e sempre entendemos que ela vem acompanhada de parentes, amigos, relações passadas, colegas. Autoras, portanto, costumam incluir na descrição de suas personagens informações sobre como elas se dão (bem ou mal) com os pais, os irmãos, os colegas de trabalho, as ex.

Em histórias lésbicas é super comum as amigas terem uma participação importante e interferirem na relação entre as protagonistas de maneira positiva ou negativa.
Nada disso é tão presente nos textos de homens, que me parecem bem mais capazes de oferecer aos leitores apenas a descrição da própria personagem, seu físico e suas roupas, o que faz e como, ou ficarem focados nas duas pessoas de que estão falando. A teia das relações sociais é muito mais presente e visível para as mulheres do que para os homens, parece-me, e mais ainda no texto de lésbicas.

Outra das características comum aos originais de escritoras é a importância das conversas. Seja na forma de diálogos, seja na forma de relatos sobre os comentários das amigas e dos familiares, as palavras trocadas entre as personagens interferem na consciência que elas têm das situações e no rumo da narrativa. Imagino que isto reflita a forma como nós mulheres encaramos o mundo (através de muuuuita conversa, hehehe), e que difere da visão masculina muitas vezes seca em diálogos e cenas de conversa. Autores adoram personagens que pensam mas não dizem, enquanto autoras, em especial as lésbicas, preferem as personagens que dizem tudo, melhor ainda se com certo drama.

A terceira característica que para mim escancara se o autor é um homem ou uma mulher são as cenas de sexo. Escritores, mesmo os mais refinados, conseguem ficar páginas e páginas descrevendo uma cena de sexo sem passar da pele dos personagens. O rala-e-rola é físico, forte, mas muitas vezes desconectado dos sentimentos. Já as mulheres incluem, ainda que sem pensar muito a respeito, dicas sobre o que se passa dentro das personagens e como elas estão sentindo o ato sexual. Mesmo nas cenas lésbicas mais calientes (e tenho lido muitas, uma delícia!), com trepadas em cima de bancadas ou na praia ou no banheiro de boates, eu fico sabendo o que as duas sentem, que importância dão para aquele encontro, como é o prazer de cada uma.

Eu não sei se acontece em 100% dos casos, mas os textos de lésbicas me parecem muito mais preocupados com a mulher por inteiro, não apenas com o fato de ela ser uma morena gostosona ou uma modelo belíssima.
Você concorda?

Em todo caso, eu mantenho a mente aberta. Talvez os homens sejam capazes de enxergar a teia de relações, de dar importância a conversas e de falar do sexo de maneira intrinsecamente ligada aos sentimentos, produzindo um bom romance lésbico. Veja só o e-mail que recebi de um amigo:

Laura, vi o vídeo no site da Malagueta, muito bom. Gostei da parte em que você diz que o que não é falado some da consciência e o que é falado permanece nela (mais ou menos) e do fechamento sobre as protagonistas terem possíveis vidas felizes. Agora sei o que preciso escrever no meu manuscrito sob pseudônimo. Já deletei o capítulo sobre a morte trágica da protagonista depois que descobre que o amor da vida dela casou com um homem para evitar “o escândalo”. Na nova versão as duas preparam uma poção com ervas provençais e o noivo, ao bebê-la, muda de orientação sexual e se torna amigo inofensivo do casal e porta-bandeira dos direitos das minorias. O problema é que o resto da poção que ficou na mesa da cozinha é bebido por engano pela sogra da protagonista, uma dama de ferro ao estilo de Margaret Thatcher, a qual vira liderança do movimento lésbico e passa a infernizar as companheiras de luta com seus caprichos ditatoriais. Quem salvará o movimento do racha entre o grupo CdH (Cabeça de Hidra, renomeado e presidido pela sogra) e o MBI (Meninas Bem-Intencionadas, uma dissidência de militantes inconformadas com os novos rumos autodestrutivos)? Será necessário navegar rio acima pela Amazônia, até encontrarem a tribo de amazonas detentoras do segredo da harmonia das guerreiras, para aplacar tamanho dissídio. Mas durante uma parada em Santarém, os charmes irresistíveis de uma cabocla ribeirinha ameaçam a estabilidade do casal e o bom êxito da aventura…

Eu respondi que, se o sexo for seguro e a sociedade das amazonas sustentável, talvez a Malagueta publique.


* Laura Bacellar é editora de livros, atualmente responsável, juntamente com um grupo de mulheres, pela primeira editora lésbica do Brasil, www.editoramalagueta.com.br.

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