Em seu doutorado durante o ano de 2012, Estevão Fernandes, antropólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia, notou que havia pouca pesquisa a respeito da vida dos indígenas gays. Sob o olhar de quem acompanha esta realidade de perto, na Amazônia, desde a década de 1990, ele lançará nas próximas semanas o livro Gays Indians in Brazil, disponível apenas em inglês. Fernandes conta que, diferente da realidade de países como Canadá e Estados Unidos, ainda há muito preconceito em relação aos indígenas homossexuais, com relatos de casos de mortes, suicídios e punições. Nas outras nações, a resposta da comunidade indígena LGBT foi o movimento “two-spirit” – uma tradição histórica de indivíduos com dois espíritos. Tratam-se de pessoas com um papel espiritual importante de embaixadores em suas culturas, por terem dois espíritos, o masculino e o feminino. Desta forma, eles poderiam migrar entre esses dois mundos e também entre o mundo do branco e o mundo indígena e o espiritual e o terreno. Para saber mais, leia trechos da entrevista: Como surgiu a ideia de pesquisar sobre indígenas gays? Acabei estudando o tema em minha tese de doutorado, em uma disciplina sobre gênero e sexualidade nas Américas e percebi que não havia nenhum texto abordando a questão LGBT em povos indígenas no Brasil. Eu havia trabalhado e estudado junto a povos indígenas no país desde o comecinho da minha graduação e no percurso tive contato com vários indígenas que, na minha concepção, seriam gays, lésbicas ou trans. Quando cheguei em casa, fiz o que qualquer pesquisador experimentado faz: joguei o tema no Google. No Brasil, não havia referências acadêmicas específicas sobre a temática. Havia apenas algumas referências à existência de indígenas queer, na literatura desde o século XVI. Por outro lado, achei algumas referências na imprensa relatando o preconceito, a agressão, os suicídios e as várias formas de violência enfrentadas por essas pessoas. Percebi que a realidade era diferente em países como Canadá e Estados Unidos. Lá, desde os anos 1990, havia o chamado movimento “two-spirit”. Basicamente, quando os indígenas LGBT começaram a voltar às aldeias para morrer de AIDS, eles foram rechaçados, sob a justificativa de que eles estariam “trazendo doenças de gays brancos” para as aldeias. A resposta desses indígenas foi no sentido de indicar que eles não teriam perdido a própria cultura, mas reassumindo uma tradição histórica de indivíduos com dois espíritos: pessoas com um papel espiritual importante de embaixadores em suas culturas, por terem dois espíritos, o masculino e o feminino. Desta forma, eles poderiam migrar entre esses dois mundos e também entre o mundo do branco e o mundo indígena, espiritual e terreno, etc. Existe algum conteúdo produzido por estes indígenas? Os two-spirit desenvolveram, nas últimas décadas, um conjunto bastante expressivo de textos e reflexões apontando como a colonização foi responsável pelo apagamento desse papel religioso. Assim eles se desviaram da crítica da sexualidade para se focar no universo religioso e cosmológico. A pergunta é: Por que nos Estados Unidos e no Canadá eles conseguiram uma mobilização em torno da crítica colonial a partir de uma identidade religiosa, enquanto no Brasil esses indígenas são vítimas de violência e acusados de estarem perdendo sua cultura? Os indígenas brasileiros tiveram sua sexualidade silenciada e isto diz muito sobre os processos históricos a partir dos quais vemos os indígenas, a sexualidade, instituições religiosas, aparatos oficiais diversos, etc. A colonização é, no fim das contas, heterossexual, branca e cristã. O livro tratou dessas questões e como isso se deu no cotidiano das aldeias, historicamente. E qual foi a sua conclusão? Como é a vida desses índios gays? A conclusão é que o assunto é tabu, no próprio movimento indígena, inclusive. Várias pessoas apagam a bandeira da sexualidade para abraçar outras, como juventude, por exemplo. Além disso, falar desses temas implica em contrapor discursos históricos e socialmente consolidados sobre tradição e cultura. Tudo piora quando pensamos na crescente influência que igrejas pentecostais exercem em várias aldeias, assim como a crescente onda de homofobia e de conservadorismo no país. Estou ainda pesquisando sobre a migração forçada de indígenas motivada por sua sexualidade e o alto número de suicídios envolvendo jovens indígenas LGBT dentro e fora das aldeias. Como foi a experiência de estar perto desta realidade? Entre tantas histórias e informações que coletou, qual você destacaria? Ironicamente, nenhuma história triste. Há inúmeras envolvendo mortes, suicídios e punições desses indígenas, mas há também a capacidade de resistência dessas pessoas. Vários indígenas me procuraram durante a pesquisa para relatarem suas experiências. Isso foi uma grata surpresa e mostra que eles ainda estão dispostos a resistir e a existir. Talvez isso nos traga, mais cedo ou mais tarde, um novo universo de possibilidades para enfrentarmos um conjunto de dispositivos que, historicamente, buscaram silenciar, apagar e normalizar essas formas de ser, existir, sentir e amar. Acho mesmo que, no fim das contas, o livro marca muito mais um ponto de partida do que de chegada. REPORTAGEM ORIGINALMENTE PUBLICADA NO SITE DO JORNAL “O ESTADO DE S.PAULO”