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Lota & Elizabeth

A culpa foi do caju. A interessante e complicada história de amor entre a brasileira Lota de Macedo Soares e a poeta americana Elizabeth Bishop começou com uma alergia complicadíssima à fruta que deixou Bishop acamada por longos dias aos cuidados de Lota.

Quando Bishop aportou em terras brasileiras em novembro de 1951, apenas de passagem, não imaginava que viveria quase um terço da sua vida no Brasil. Observação importante: como companheira da esteta Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, conhecida como Dona Lota, que para quem não sabe e conhece o Rio de Janeiro foi a criadora do Parque do Flamengo, à beira-mar.

Em fevereiro de 1952, Bishop ganhou na sua festa de aniversário um anel onde estava gravado: “Lota 20.12.51”, dia em que Lota tinha proposto a Elizabeth que ficasse no Brasil com ela.

Agora, nos cem anos de nascimento da poeta americana, leio no jornal que seus livros só se encontram em sebos, pois sua obra esta fora de catálogo no Brasil. Provavelmente a falta de interesse dos brasileiros por poesia justificaria a não reedição dos mesmos, diz seu tradutor Paulo Henrique Britto.

Elizabeth Bishop é considerada poeta fundamental do século 20 nos Estados Unidos. Era lésbica de carteirinha e, além de ter se apaixonado por uma brasileira, viveu seus dias mais felizes aqui, apesar de achar o país um “horror” (ela mesmo se expressou dessa forma numa carta para um amigo americano).

Puxando a sardinha para o nosso lado, como Lota permanece ignorada no Brasil, quero falar um pouco sobre esta importante figura feminina tão fora dos padrões para a sua época, que morreu tragicamente em Nova York em setembro de 1967 de uma overdose de sedativos, traída pela companheira. Bishop, na época, foi responsabilizada pelo suicídio de Lota.

Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, nascida em Paris, era rica, aristocrática e estudou na Europa. Não cursou universidade, mas se interessava por arquitetura e foi autodidata.

Na época, a consideravam brilhante e com ideias avançadas. Era discreta e autêntica, não escondia a sapatice apesar de não torná-la pública. Dirigia um Jaguar e não era bonita. Era ousada no figurino, usava abotoaduras em camisas de seda e calça comprida, isso nos anos 50!

Em 1961, foi convidada para coordenar a construção do parque no aterro do Flamengo, projeto que tocou praticamente até o fim da vida, apesar de alguns atritos sérios com a politicagem da época.

Viveu intensamente sua história de amor com Elizabeth, conhecida por sua personalidade difícil e por beber compulsivamente desde os 21 anos de idade. Moraram a maior parte do tempo juntas numa casa considerada ultramodernista, construída por Lota num lugar chamado Samambaia em Petrópolis.

Lota literalmente andava de jeans, com as mangas da camisa arregaçadas e falava palavrões. Praticava agricultura orgânica e era capaz de planejar e executar obras complexas, como represas e estradas.

O Parque do Flamengo criado por Lota na cidade maravilhosa foi capa da revista americana “Time” em 1965, ano em que Bishop tomou o avião para Seattle ao ser contratada como professora. Daí em diante a relação das duas desandou e a poeta se envolveu com outra mulher.

Quando preconceitos seculares ainda pesam sobre a homossexualidade em pleno século 21, temos aí um exemplo vigoroso de uma mulher que soube enfrentar a sociedade brasileira nos anos 50 e 60 com discrição, mas sem disfarçar sua orientação sexual, que sempre encarou com muita naturalidade. Lota foi capaz, dentre outras coisas, de enfrentar um mundo burocrático e de hierarquias fruto da mentalidade masculina, com ideias vanguardistas e luminosas.

Em 1995, quando ainda não havia as Edições GLS, Aletheia e nem a Brejeira Malagueta, encontrei por acaso na Livraria Laselva o delicioso livro de Carmen Oliveira “Flores Raras e Banalíssimas”, da Editora Rocco, contando a trajetória do casal. Confesso que fiquei fascinada com a história das duas e mais ainda com Lota, que até então eu desconhecia.

Enquanto lia o livro ficava imaginando Lota numa grande tela de cinema com sua ousadia, vestindo roupas masculinas e peitando a alta sociedade carioca com seu jeitão independente e determinado, nem aí com a opinião alheia! Confesso que sentia inveja, pois na época eu era totalmente enclosetada, e ao mesmo tempo tinha admiração, muita mesmo.

Lembro que fiquei completamente embargada quando terminei de ler o livro e inconformada com o fato de que ainda hoje Lota permanece ignorada no Brasil. Boa notícia, parece que isso agora vai mudar. Está em fase de produção o filme de Bruno Barreto, com Glória Pires no papel de Lota, “A Arte de Perder”. Ao contrário do título, todas/os nós vamos ganhar e muito com esta iniciativa. Parabéns, Dona Lota, mais do que merecido!

* Hanna Korich é uma das sócias fundadoras da Editora Malagueta, agora Brejeira Malagueta – a primeira e única editora dedicada à literatura lésbica da América Latina, desde 2008.

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