in

“Luta contra o preconceito é maior que luta contra aids”, diz João Netto, positivo há 10 anos

Assessor técnico do Ministério da Saúde, João Geraldo Netto é um dos exemplos da chamada "visibilidade positiva" no Brasil. Ele já estampou campanhas, participa de palestras, encontros e ações para falar sobre a vivência de ser soropositivo há mais de 10 anos.

+ Homens postam foto tomando banho em desafio contra o HIV

Aos 32, o goiano radicado em Brasília leva uma vida com cuidados necessários – e com o uso de medicamentos – mas não muito diferente de outras pessoas soronegativas.

Tanto que, uma das campanhas contra a aids, diz: "João Netto vive com HIV. Ele estuda, pratica esporte, não abre mão de se divertir. Leva uma vida com qualidade. Tudo isso porque fez o teste de aids e descobriu a tempo de se cuidar". Ele também é (muito bem) casado com André Moreira, tá? 

No dia 1º de dezembro é lembrada a Luta Mundial Contra a Aids. E o A CAPA conversou com João sobre o assunto. Confira:

– O que o Dia da Luta Mundial Contra a Aids representa para você?

É uma data importante para dar visibilidade ao assunto e alertar as pessoas. É triste porque a aids não está mais na mídia, deu uma banalizada, não é mais vista como um grande problema que mata. Parece que as pessoas esqueceram que há muita gente se infectando. Mas é só vermos os boletins epidemiológicos para saber que a situação está piorando no mundo inteiro, não só no Brasil.

– Quais são os mitos que ainda hoje permeiam as discussões sobre a aids?

Ainda existe o mito que se trata de uma doença de gays. As pessoas ainda hoje não sabem como contraem o HIV, tendo várias teorias infundadas e muitas ainda têm medo de conviver com pessoas soropositivas – sendo que o HIV não interfere, tendo algumas limitações, que a pessoa viva como qualquer outra. A ignorância ainda está presente. 

– A luta contra é contra a aids, mas é uma luta também contra o preconceito contra quem é positivo, certo? O que fazer para combatê-lo nestes casos?

A luta é maior contra o preconceito que contra a aids. O estigma mata as pessoas, pois elas deixam de ir, por exemplo, ao Centro de Saúde porque tem medo que uma vizinha a vejam. O preconceito atrapalha porque as pessoas entram em depressão pela visão errada. Para combater, trabalho com um termo que a Beatriz Pacheco (advogada soropositiva) diz: visibilidade positiva. É a capacidade de as pessoas positivas mostrarem para o mundo que elas têm problemas, fazem uso de um medicamento, mas que também tem momentos legais – assim como todo mundo. E que não tenho medo de falar, porque não fiz nada de errado.

– Você também teve preconceito quando descobriu que havia contraído o vírus HIV? Qual foi a sua reação nas primeiras horas?

Sempre me considerei uma pessoa muito informada, instruída, falava sobre sexo em casa e já estava na pós-graduação. Mas quando descobri, fiquei péssimo, pensei que fosse morrer em breve. Mas foi curioso, porque existe algo que se chama resiliência, que é a capacidade de as pessoas contornarem uma dificuldade e voltarem para como eram antes do problema. E descobri que tenho uma resiliência muito grande.

– Como ocorreu? 

No mesmo dia, fui a uma praça de Petrópolis e uma moça apareceu e falou um monte de coisas bacanas. Disse que várias pessoas têm outras doenças e que é necessário se reerguer, pois o mundo não vai parar de girar por conta dos nossos problemas. Foi um tapa na cara com carinho e eu prometi que nunca ia sofrer por causa do HIV.

– E nunca mais sofreu, mesmo?

Consegui segurar as pontas, até porque tive apoio do ex-marido, da família e amigos. Mas eu sofria, sim, principalmente quando via que o exame estava piorando e que ainda não poderia tomar remédio – pois o protocolo dizia que só poderia tomar remédio quem estivesse doente.

– Os gays sempre se deparam com o armário. Isso ocorre duas vezes com quem é gay e soropositivo?

Penso que não dá para comparar, pois quando você sai do armário por ser gay é para viver uma vida gay, namorar e tal. Já quem é soropositivo não quer sair do armário. O maior dilema é se conta ou não para o parceiro, pois existe o medo de ser abandonado por ele. Fora isso, aparece o dilema de contar para a família e o pai morrer ou de não precisar esconder mais os medicamentos. O meu "outing positivo" (saída do armário positva) foi feito pela campanha do Ministério da Saúde, em 2010, quando fui convidado e incentivado. Vi que era a oportunidade de falar sobre algo que eu estava estudando, fazer alguma diferença e de deixar algo na história.

– Qual é a diferença de falar "grupo de risco" e "comportamento de risco"? 

Algumas palavras ajudam a reforçar o estigma. A palavra "aidético", por exemplo, nunca desse ser usada. O "grupo de risco" foi usado no boom da aids e era utilizado para separar as pessoas gays. Na prática, o que temos é um "comportamento de risco" e "uma população-chave", em que a gente tem que atingir. A gente precisa, sim, saber que a aids afeta vinte vezes mais a população gay, travestis e HSH, além dos usuários de droga, até pela prática do sexo anal. É triste, preocupante, mas é verdadeiro. Se a gente trabalhar como uma doença geral, como querem alguns movimentos, a gente vai dar um tiro pra cima e não vai atingir ninguém. A gente precisa trabalhar essa questão com os GBT e HSH, pois temos que pensar acima de tudo em saúde pública.

– Depois que você terminou o casamento tempos depois, achou que a vida amorosa fosse estar comprometida? Hoje, casado novamente, o que muda em um relacionamento sorodiscordante?

Não, porque quando eu terminei o casamento eu já estava em contato com o meu atual marido. Ele só queria que eu terminasse o casamento para a gente poder namorar. Agora, o que muda é que o medo acompanha, sim. Mesmo eu já estudando muito sobre o assunto e tomando todos os cuidados, há o medo de infectar o parceiro.

– Você contou que não fazia uso de medicamentos. Hoje em dia você faz o uso?

Como disse, não tomava porque era preciso estar doente para fazer o uso, mas há dois anos comecei a tomar. Eu e o meu marido tivemos um acidente durante uma brincadeira e ele foi exposto a uma possível infecção. Ele fez o uso da PEP (Profilaxia Pós Exposição) e ficou mal, internado, e eu decidi fazer o uso sem a indicação clínica. E isso só foi possível porque houve uma modificação nos protocolos clínicos de tratamento HIV sobre pacientes em relacionamento sorodiscordantes, pois o uso dos retrovirais faz com que o risco de contágio diminua. Sobre os efeitos colaterais, saí da diarreia para a dor de cabeça (João preferiu não falar sobre efeitos colaterais, pois eles variam de pessoa para pessoa e, segundo ele, muitos dos que teve foram de herança genética).

– Hoje você consegue ver algum lado positivo em ser soropositivo? 

Com certeza, minha vida mudou radicalmente. Digo mais: a minha vida mudou para melhor – não que tenha sido bom, mas que passei a ver de uma maneira diferente, mais intensa. As sensações ficaram intensas. Os cheiros, as cores e a capacidade de prestar atenção. O medo de morrer foi tão grande que eu comecei a despertar todos os sentidos para aproveitar aqueles momentos.

– O ator Zachary Quinto afirmou que a comunidade LGBT anda preguiçosa com a aids, que ela não é tão temida como nos anos 80, pois as pessoas sabem que é possível conviver com ela. Você concorda?

Concordo em partes. As pessoas realmente estão perdendo o medo, pois veem apenas como uma doença crônica, mas há vários fatores. Há pesquisas que dizem que a confiança sobre o parceiro está acima do medo. Os jovens a partir da segunda vez que transam já acham que a pessoa é íntima e que podem transar sem o preservativo. A aids está saindo de pauta e as pessoas estão perdendo a referência. É importante mostrar que as pessoas que vivem com o HIV vivem uma vida comum, mas é importante falar que a luta contra a infecção continua, pois os efeitos são muito ruins e traz mudanças em nossas vidas que poderíamos ter evitado. 

– Você já se colocou a favor dos retrovirais. É também a favor da PrEp, que visa dar o medicamento diário para pessoas soronegativas que assumem o comportamento de risco se prevenirem?

A ideia é que se reduza a possibilidade de as pessoas se infectarem e não estimular que as pessoas façam sexo sem camisinha. Ela está sendo estudada para aplicar por exemplo em profissionais do sexo, que por questão financeira acabam tirando o preservativo. É um método de reduzir a infecção, mas é uma ação de prevenção combinada. É válido que tenhamos todas essas ações, sabendo qual é a realidade, para que paremos a cadeia de transmissão de HIV. É investir primeiramente na camisinha, depois no retroviral e em todas as iniciativas que visam cercar e zerar a infecção de HIV.

– Tem algum filme que você indica para as pessoas assistirem nesta data?

O Clube de Compras Dallas, que é um filme que mostra como era o início do tratamento, sobre como o AZT era utilizado e a briga com a indústria farmacêutica. É um filme que mostra como era e como a gente está andando.

– Qual é a mensagem que você diria para quem se descobrir soropositivo e quem ainda se nega a fazer os exames?

Para quem não é, digo que é possível a gente viver com o HIV, porém não é uma vida fácil. Temos que tomar medicamentos que transformam a vida e temos que seguir regras que não precisaríamos ter e infelizmente a aids ainda mata. As pessoas precisam saber que 1/3 não sabem que tem aids e fazer o teste é a melhor forma de a gente se cuidar a tempo.

Já para as pessoas que vivem com o HIV, digo que a vida não acaba, que há vida após o HIV, mas que elas precisa trabalhar para viver de forma positiva. Existe maneiras de ver uma vida saudável com os medicamentos, mesmo com os efeitos colaterais. Temos um grupo secreto no Face em que pessoas dividem experiências e se ajudam. Quem quiser participar, manda um e-mail para nettinhos@yahoo.com.br e diga que quer entrar no grupo com o endereço que usam no Facebook. Sem dúvidas, é um contato é positivo.

“Ensinamos ele a odiar a si mesmo”, diz mãe sobre filho que morreu após tentar “cura gay”

“Da favela para o mundo”, diz 1ª trans negra a vencer concurso de miss no Brasil