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Márcio Retamero: A loucura dos extremismos

O grande historiador Eric Hobsbwan, numa profunda e contundente análise do século XX, o denominou de "A Era dos Extremos". Hobsbawn revela a árdua construção e depois o grande abalo das certezas que fundamentavam o Ocidente e o Oriente (capitalismo e comunismo, respectivamente), começando pelo episódio ocorrido em Saravejo em 28 de junho de 1914 e que iniciou a Primeira Grande Guerra, até retornar à mesma cidade, no início da década de 1990, quando teve início uma guerra étnico-religiosa entre bósnios e sérvios que destruiu a bela capital da Bósnia e Herzegovina.

Um dos roteiros turísticos mais procurados pelos viajantes de hoje é o "circuito turístico bélico", que dura cinco horas e é chamado de "Missão Impossível". Fazendo o percurso, o turista pode visitar o grande estádio do bairro de Kosevo, cujo campo de futebol auxiliar transformou-se num grande cemitério de lápides brancas mulçumanas. O roteiro também inclui a ponte "Romeu e Julieta", usada como rota de fuga para as áreas sérvias da cidade, pelos casais mistos, ou seja, casais formados por cristãos e mulçumanos. Cerca de 17% dos habitantes de Saravejo eram casais mistos.

Hoje Saravejo é uma cidade de maioria mulçumana, onde cristãos e judeus são minorias. A guerra civil étnico-religiosa arrasou não apenas a beleza da capital, mas as vidas de seus habitantes. Os que conseguiram escapar do inferno daqueles dias não desejam retornar, pois ainda pulsa em suas memórias o terror daqueles dias terríveis. Sempre é bom lembrar: isso ocorreu logo "ali" atrás, no início da década de 1990 e só terminou nos primeiros anos do século XXI!

Iniciei com este exemplo concreto e triste para que tomemos consciência – porque se faz urgente – do perigo dos extremismos e do quão maléfico é tomarmos posições estanques quando o que está em jogo é religião, etnia, orientação sexual e todas as demais categorias sordidamente usadas para desnivelar pessoas e rotulá-las, geralmente na intenção de torná-las um "não-ser", combatê-las até que não mais existam.

Creio que a maioria dos meus leitores tomou conhecimento do obscuro pastor Terry Jones (foto acima), de Gainesville, Flórida, e da sua perversa e louca intenção de queimar exemplares do Alcorão – o livro sagrado dos mulçumanos – no último 11 de setembro, como forma de protesto contra os ataques terroristas que botaram abaixo as torres gêmeas do World Trade Center em 2001.

O pastor Jones desistiu de queimar o Alcorão logo depois da comoção que causou com tal notícia bomba de norte a sul dos Estados Unidos. Líderes religiosos, pacifistas, políticos, diplomatas, gente do povo e até o presidente Barack Obama, vieram a público declarar que tal gesto infame só traria mais dor, desgosto, vingança e morte.

Barack Obama em entrevista coletiva declarou: "Eu acho que é absolutamente importante neste momento que a maioria esmagadora dos americanos mantenha aquilo que temos de melhor: a crença na tolerância religiosa, clareza sobre quem são nossos inimigos". Também afirmou: "A ideia de que nós possamos queimar textos sagrados da religião de outros é contrária àquilo sobre o qual esta nação foi fundada. E minha esperança é que este indivíduo evite fazê-lo".

O que Terry Jones não teve coragem de fazer, outro até então desconhecido cidadão australiano, um professor universitário chamado Alex Stewart (foto, à dir.) fez e postou no site YouTube, no dia 11 de setembro. Detalhe: ele "fumou" não apenas páginas do Alcorão como também da Bíblia Cristã, na "intenção" de verificar qual dos dois "queimava melhor".

Stewart, que trabalhava como professor na Universidade Tecnológica de Queensland, foi suspenso, tomou uma reprimenda pública da instituição de ensino que o empregava e ganhou, certamente, fãs ardorosos, bem como inimigos que o odeiam em igual intensidade. Ateu convicto e membro de um grupo de ateus da cidade de Brisbane, o professor Stewart declarou: "O vídeo era uma piada, claro", dizendo que "só" queria exercer sua "liberdade de expressão".

Estou convicto de que liberdade de expressão é um dos mais caros princípios democráticos adotados nos países onde a democracia foi conquistada e ainda é zelada, inclusive no nosso Brasil. No entanto, liberdade de expressão não dá o direito de cidadão algum ferir a consciência do seu co-cidadão e sua liberdade religiosa. A liberdade de expressão não abre mão da responsabilidade civil, ética e criminal. Todas essas coisas a compõem. Existe um limite na liberdade para que seja evitada a anomia social. Democracia e anarquia são dois conceitos da ciência política muito bem delimitados.

Fundamentalismos como o de Terry Jones e do professor Alex Stewart não promoverão nenhuma democracia ou progresso ideológico e social. Na verdade ambos – ainda que somente o ATEU tenha chegado às vias de fato no que o cristão fundamentalista intencionava – atentaram contra a democracia e seus valores como liberdade de expressão, liberdade religiosa – inclusive de não ter religião –  isonomia de direitos e laicidade do Estado.

Ateus também podem ser fundamentalistas e promoverem o ódio e a morte de seres humanos tanto quanto um cristão fundamentalista ou um mulçumano fundamentalista ou qualquer fundamentalista de qualquer religião (Karen Armstrong em seu belo livro "Em Nome de Deus" nos ensina que até entre budistas existem fundamentalistas).

O caminho para a convivência pacífica, para a verdadeira democracia e seus almejados valores, jamais passará pela loucura dos extremismos, sejam eles filhos da fé ou de nenhuma fé! Episódios como este promovido por este professor ateu australiano é tão nocivo quanto o discurso de um Silas Malafaia – que nunca derramou sangue alheio e que alega "liberdade de expressão" para dizer as maiores atrocidades contra o povo do arco-íris, o povo LGBT e impedir a conquista da cidadania plena desta minoria social.

Na minha tradição de fé – sou cristão reformado – acreditamos que as palavras e as atitudes matam tanto quanto um tiro de fuzil. Existem muitas maneiras de matar e morrer. Mata-se com a língua, como faz Silas Malafaia e seus pares. Mata-se com atitudes, como as do professor ateu australiano. O caminho que leva à vida é o respeito, a tolerância e a paz entre seres humanos sejam eles de qualquer fé ou fé nenhuma.

* Márcio Retamero, 36 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói. É pastor da Comunidade Betel/ICM RJ e da Igreja Presbiteriana da Praia de Botafogo. É autor de "O Banquete dos Excluídos" e "Pode a Bíblia Incluir?", ambos publicados pela Editora Metanoia. E-mail: marcio.retamero@gmail.com.

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